quarta-feira, 16 de março de 2011

Das névoas da minha infância...

Todas as tardes ele passava por ali acompanhado do cão, preso a uma coleira improvisada. Debaixo dos trajes, andrajosos e imundos escondia-se uma bela figura masculina, ou melhor, o que restara dela. Olhos profundamente azuis, cabelos grisalhos, barbas longas e embaraçadas, lembrando a figura de um Noé.

Não fixava o olhar em nada nem em ninguém. Caminhava devagar, numa marcha cansada e monótona, como se fosse puxado pelo cão. Pensamentos profundos absorviam-lhe a atenção e davam ao seu olhar um ar baço e distante. Apesar da aparência e do mal cheiro, não inspirava medo.

Em todos aqueles anos em que desfilou pelas ruas do bairro, essa dupla bizarra manteve-se silenciosa como se entre eles, homem e cão, houvesse um mórbido pacto.

Quando algum menino mais atrevido ousava dirigir ao mendigo alguma ofensa, ou atirar pedras no cão, simplesmente recuava e ignorava o atrevimento. Nunca respondia. Nunca revidava. Os transeuntes que o conheciam é que vinham em sua defesa.

O cão era um vira-latas pequeno, de pelo curto e cor indefinida mas com personalidade marcante. Marchando com altivez à frente do seu amo e senhor, ele era todo orgulho e felicidade. De cabeça erguida, movimentava-se olhando para os lados abanando incansavelmente a pequena cauda, como a demonstrar aos passantes, a honra de pertencer a tão nobre figura. Compunha com o dono, um conjunto único, rítmico e harmônico.

Motivos para tal orgulho os tinha de sobra. Era amado e tratado com desvêlo. Nunca fora maltratado e tudo o que aprendera fora às custas de carinhos e alimentos. Alimentos esses, conseguidos muitas vezes nas latas de lixo é bem verdade, mas afinal, isso não importa quando a mão que oferece é sincera e amiga.

Bernardo,esse era o nome do mendigo, freqüentava o botequim, apenas porque ali recebia uma refeição por dia, o que lhe garantia a sobrevivência. Sua e do cão. Nunca pediu nem aceitou bebidas alcoólicas.

Um dia, não sei bem quando foi, escutei uma conversa entre minha mãe e uma vizinha, por ocasião de um alvoroço na rua de casa.

Alguns meninos, armados de atiradeiras, jogavam pedras no cão de “seu” Bernardo. O pobre homem desesperado, tentando socorrer o animal, fora atingido por um petardo na testa e sangrava abundantemente. Os homens que se encontravam no bar próximo, saíram à rua, espantaram os meninos e tentavam socorrer o ferido que debatia-se para livrar-se deles, dispensando sua ajuda , como se ela o ultrajasse.

Formou-se então um grupo de mulheres curiosas com crianças agarradas às saias, que comentavam indignadas a maldade ali praticada. Quando a situação acalmou-se, ficaram no local apenas minha mãe e uma vizinha. Deu-se então uma conversa que chamou-me a atenção e impressionou-me apesar de minha pouca idade e do fato de não atinar com o alcance da tragédia que ela encerrava.

Segundo aquela senhora, Bernardo fora um dos primeiros moradores do bairro. Um jovem e brilhante advogado que construíra ali uma bela casa, muito bem localizada, num terreno todo ajardinado.

Filho de imigrantes alemães que se instalaram no sul do país no começo do século, Bernardo concluíra os estudos até o segundo grau em sua terra natal. Depois viera para São Paulo para cursar a Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Aluno exemplar, rapaz de boa formação e caráter, chamou logo a atenção dos professores que acompanharam-no durante o curso e o ajudaram no início da carreira. Assim, logo após a formatura, assistida com orgulho pelos pais, foi convidado a trabalhar no escritório de um de seus professores. Aprendeu logo os segredos do ofício e não lhe foi difícil, em bem pouco tempo, montar sua própria banca e conquistar uma boa clientela que lhe garantia uma vida segura e confortável.

Foi nessa ocasião que comprou o terreno no bairro e iniciou a construção da bela propriedade da chácara, como era conhecida sua residência. Esse foi seu primeiro sonho a se realizar, sonho que brotara do amor que sentia por Mariana, sua noiva, uma jovem que conhecera na biblioteca da faculdade.

Logo após a formatura, realizou-se o casamento, numa pequena capela, escolhida pela noiva, numa cerimônia simples e comovente. Mariana era finalmente sua, de corpo e alma. Bernardo sentia-se o mais feliz dos mortais.

Tudo era novo. A casa, o bairro, a vizinhança, as sensações. Ah! As sensações! Não ser mais sozinho, poder compartilhar os sonhos, as alegrias, os carinhos e os prazeres. Era tudo o que desejara, e mais, muito mais.

Dois anos depois do casamento, num típico dia de inverno paulistano, frio e garoento, nasceu Karin, trazendo consigo calor suficiente para aquecer seu coração naquele momento e em todos os invernos de sua vida. Sentia-se completo agora.

Com tanta felicidade, Bernardo vivia intensamente a vida pessoal e profissional. Era agora um esposo realizado, um pai orgulhoso e um advogado bem sucedido. Confiante no futuro e embriagado com as alegrias que este lhe reservava, não percebeu quando a chama do amor de Mariana já não ardia tão intensamente, ou, se percebeu, atribuiu a mudança à própria evolução da vida familiar, agora repleta de situações novas e muitas responsabilidades. A filha que crescia e desabrochava, solicitando da mãe mais cuidados; os trabalhos domésticos que aumentavam com o aumento da família; seu sucesso profissional que lhe absorvia muito tempo e roubava-o do convívio do lar. Em seu coração jamais brotou a semente da desconfiança.

Quando naquela tarde retornou à casa mais cedo do que de costume, em busca de alguns documentos que esquecera pela manhã, não estranhou a presença de um veículo estacionado próximo ao portão de sua casa. Entrou naturalmente como fazia todas as tardes. Estranhou sim, não encontrar Mariana na sala de estar com o bordado nas mãos e a filha a brincar por ali, com a boneca de louça francesa. Preocupado, dirigiu-se para o interior da casa à procura delas.

A porta do quarto do casal estava entreaberta e através do vão pode ouvir vozes abafadas. Aproximou-se mais, intrigado com o inusitado da situação. Agora ouvia bem as vozes, ou melhor, entendia o que se passava. E como entendia!

O chão sumiu-lhe sob os pés. A vista escureceu e uma forte vertigem quase o atirou ao solo. Um furor incontrolável subiu-lhe à cabeça, obscurecendo a capacidade de raciocinar. As vozes continuavam. Eram sussurros entremeados de risos. Feriam seus ouvidos e penetravam em sua cabeça como a lâmina de um punhal.

Queria entrar naquele aposento, gritar, xingar, espancá-los, matá-los. Matá-la! Não conseguia mover um músculo, preso ao chão como estava. Numa fração de segundo toda a sua existência passou-lhe diante dos olhos injetados de ódio e dor.
Muito mais dor que ódio.Não podia acreditar. Sua Mariana não seria capaz daquilo!

A torpeza daquela situação manteve Bernardo imóvel, estarrecido, durante uns poucos minutos. Ao passar o torpor, virou-se e lentamente dirigiu-se à porta da sala. Quando chegou ao portão já não era o mesmo homem. Tudo nele se desintegrara.

Como um autônomo, saiu caminhando sem destino. Perambulou durante horas pelas ruas desertas. Não sentiu o vento forte nem o temporal que se abateu sobre a cidade naquela noite. Andou. Andou até chegar à exaustão.

Foi encontrado pela manhã, por operários que se dirigiam ao tabalho, desmaiado na sargeta, com o elegante terno de linho branco enxarcado de lama. Socorreram-no e o conduziram a um hospital próximo, onde internado como indigente custou muito a se recuperar de uma grave pneumonia. Após algum tempo transferiram-no para um hospital psiquiátrico. Não queria viver, não tinha mais razões para viver.

Nunca mais falou. Não manchara as mãos,mas morrera para o mundo.

Quando anos mais tarde apareceu perambulando pelas ruas do bairro, algumas pessoas que o reconheceram tentaram trazê-lo de volta à vida normal. Tudo em vão, o vínculo que o ligava a seus semelhantes desaparecera. O único laço que o prendia agora ao mundo dos vivos, era aquela coleira improvisada do cão, companheiro de infortúnio que encontrara abandonado na porta do hospício, quando recebera a alta.

Logo que o viu, o animalzinho esquálido e faminto correu a lamber-lhe os pés e passou a seguí-lo por toda parte. No princípio ignorava-o, mas, certo dia ao vê-lo maltratado por transeuntes, defendeu-o, tomou-o sob sua proteção, colocou-lhe a coleira e nunca mais se separou dele.

Quando voltou ao bairro, Mariana e Karin já não moravam mais ali. Comentava-se que as duas mudaram-se para a Europa em companhia de um senhor muito rico, que ninguém por ali conhecia.

A casa, a linda casa da chácara, nada mais era agora do que escombros. Ali, entre aquelas ruínas, Bernardo passava as noites com o cão e como uma alma penada, arrastava-se por onde outrora fora o jardim florido de Mariana.

De vez em quando, algum transeunte noturno menos avisado, parava curioso em frente àquela propriedade abandonada e não raro divisava na escuridão uma figura estranha, que se movia lentamente por entre o mato crescido, acompanhado por um cão e que, de vez em quando, abaixava-se e num gesto imaginário apanhava uma flor que não existia, beijava-a e a entregava para alguém que também não se encontrava ali.

Nesses raros momentos, quando havia luar suficiente, o observador mais atento podia ver uma caricatura de sorriso esboçando-se em seu semblante e por alguns segundos ter a impressão de que Bernardo era um homem são e feliz.

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