quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O harém

Em 1965 iniciei oficialmente minha carreira no magistério, digo oficialmente, pois a partir daí comecei a receber salário. Foi no Bairro do Rio Bonito, em uma escola de emergência, que funcionava em um barracão de madeira, alugado por nós, professoras dos três períodos e compartilhava o terreno com quatro casas, distantes umas das outras, de cinco cômodos cada, bem conservadas, com varanda e jardins floridos todas elas.

A propriedade, situada na Estrada do Rio Bonito parecia uma antiga chácara, com árvores frutíferas, plantas ornamentais, hortaliças diversas, galinhas e patos soltos e criação de abelhas (africanas) para a produção de mel, e lá pelos fundos, um resto de mata nativa.


A sala de aula. Minha irmã com alguns dos meus alunos em foto tirada por mim

Ali, entre aves e cachorros brincavam alegremente doze crianças, tez morena clara, cabelos loiros, às vezes lisos outras encaracolados, com idades variando entre 12 e 2 anos, irmãos por parte de pai ou sobrinhos desses.

Não me lembro o nome de ninguém, nem do proprietário, nem de nenhuma de suas duas esposas, nem da ex que morava na casa maior e de arquitetura mais elaborada e que tinha dois filhos moços, um solteiro em casa e outro, casado e morador também daquele quintal com a esposa e três filhos – os sobrinhos das outras crianças.

O velho, vou chamar assim o senhorio, um homem de seus sessenta anos ou pouco mais, magro, enrugado, vestia ternos escuros e surrados, camisa branca, gravata e chapéu. Estava sempre por perto, como a marcar o seu território.

Dormia alternativamente com uma das duas atuais e exceto a ex, que vivia reclusa, todos ali se relacionavam harmoniosamente, sendo isto visível nas expressões satisfeitas daquelas jovens e belas mulheres e na eletrizante alegria daquelas crianças simples, mas bem cuidadas. Os que estudavam conosco, ao todo oito, eram bons alunos, inteligentes, interessados e educados.

Não raro, viam-se as duas atuais e a nora batendo bons papos em meio à correria da criançada.

De vez em quando, o velho aparecia na porta da sala de aula, guarda-chuva enganchado no braço, tirava o chapéu, fazia uma reverência e, falando muito baixo, como era de seu feitio, indicava para qual das mulheres deveria ser pago o aluguel daquela vez e explicava que iria estar fora por alguns dias, tratando de seus “negócios” lá para os lados da Guarapiranga e que qualquer problema enquanto estivesse fora, deveria ser tratado com a ex, que ele tratava por dona mais o nome.

Essa, bem mais velha que as outras que deveriam ter a idade dos filhos dela, era uma mulher morena, cabelos escuros e compridos, presos em um “pirote”, é assim que se fala na minha família, no topo da cabeça, que lhe dava um aspecto de mais velha. Usava roupas escuras, só falava o estritamente necessário e tinha no olhar a expressão amarga de mágoas recolhidas.

Estive naquele lugar do dia 14 de fevereiro a 14 de dezembro, todos os dias letivos daquele ano de 1965. Nunca ouvi ou vi brigas, gritarias ou qualquer coisa que fosse que denotasse ali alguma desavença. Nunca soube quais eram os “negócios” do velho, mas com certeza eram rendosos e bastantes para manter com fartura e conforto, quatro famílias.


Em passeio ao Zoológico de São Paulo, dois alunos da mesma turma e eu.

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