sábado, 14 de janeiro de 2012

Minha madrinha de Batismo

Fui batizada no dia 6 de janeiro de 1946. É dessa data a foto que ilustra o texto.

Minha madrinha era uma gaúcha, filha de escrava com português. Era mulata, alta, talvez da minha altura, cabelos levemente crespos. Quando jovem, sofreu muito com as insanidades da mãe, que bebia e tinha distúrbios mentais, a ponto de despejar o urinol sobre a cabeça de seresteiros que em noites enluaradas faziam serestas à sua janela, matando-a de vergonha.

Veio para São Paulo e casou-se com um belo jovem filho de portugueses, loiro de olhos azuis. Tiveram cinco filhos, todos tão diferentes um do outro, quanto o próprio casal. O primeiro Roberto, não conheci, morreu antes do meu nascimento, era negro, como seu ídolo no futebol: o Baltazar e esse era seu apelido no time da turma da criançada da Vila Indiana. Arrancou um dente, jogou futebol escondido da mãe – que estava no trabalho – a tarde toda, debaixo de um sol escaldante. Teve febre alta e foi constatado meningite. Quando o antibiótico chegou ao aeroporto de Congonhas ele já estava sendo velado. O segundo, Antonio, moreno, participava de campanhas políticas e acabou sendo agraciado com o cargo de fiscal de feira na eleição em que seu candidato saiu vitorioso. O outro, João, louro sarará de olhos azuis, era, com a mãe, padrinho da minha irmã Jussara.

Depois vinha a Cida, única filha mulher, morena e linda e por fim o Getúlio, que tinha esse nome em homenagem ao então “Pai dos Pobres”, Getúlio Vargas, que minha madrinha venerava, tanto que sempre manteve um retrato do ditador/presidente, num quadro, na parede da sala. Foi quando amamentava esse menino, no início da década de 40, que estreitou seus laços de amizade com minha mãe, cuja família já conhecia do bairro de Indianópolis.

Nessa época, dona Izabel, assim se chamava minha madrinha, era ama de leite de um menino filho de uma família judia do bairro. Chegou até eles por indicação do Dr. Maurício, pediatra da Cruz Vermelha, ali na atual Avenida Ruben Berta. Contava ela, que ao apresentar-se à mãe do garoto, prematuro, que se não se alimentasse de leite materno morreria, a mãe começou a chorar compulsivamente. Ela não entendeu nada, mas, mais tarde, soube através da própria mãe, que naquele momento temera que seu filho sendo amamentado por uma negra, se tornasse negro também e na manhã seguinte foi ao consultório do pediatra para tirar essa dúvida, fazendo-o rir muito. Tornaram-se amigas e minha madrinha sempre contou com a ajuda daquela família.

Como a patroa precisava de alguém para fazer-lhe companhia e ajudar com os cuidados do pequeno Bernard Claude, dona Izabel indicou minha mãe para a tarefa, que lá ficou até 1943 quando a família se mudou para a Brigadeiro Luiz Antonio e ela, estando para se casar, não acompanhou.

Dona Izabel e minha mãe permaneceram grandes amigas. Ela foi testemunha do casamento civil de minha mãe e quando nasci foi a escolhida para madrinha de batismo. Foi também madrinha de batismo da Jussara, minha irmã mais nova e de Crisma da Sid, a do meio, pois como concordavam as duas comadres, ela deveria ser madrinha de todas nós, tão grande era a amizade e consideração entre elas.

Enquanto viveu, sempre nos visitou atenta ao nosso desenvolvimento, presenteando-nos nos natais e aniversários, alegrando-se com nossas alegrias e solidarizando-se com nossas dificuldades. Foi ela também, junto com minha madrinha de Crisma, testemunha de meu casamento civil.

Lembro-me que todas as vezes que vinha em nossa casa, trazia um delicioso bolo de fubá com erva-doce e canela com açúcar por cima. Jamais experimentei um bolo de fubá tão bom como aquele. Embora tivesse apenas um rim, tomava caipirinha e cerveja, quando saía com as amigas. Curtir as amigas, sair a passeio ou às compras com elas, sempre se constituiu para ela motivo de grande prazer.

Meu padrinho faleceu quando eu tinha 4 anos, vítima de um infarto. Apenas me lembro dele abaixado, segurando minhas mãos, com o rosto bem próximo ao meu e aqueles lindos olhos azuis olhando os meus e dizendo que crianças têm o hálito dos anjos. Depois me mandava recitar a “Batatinha quando nasce”, que eu sabia de cor desde meu primeiro ano de vida e sorria satisfeito. No dia de seu velório, realizado em casa, me lembro de que as mulheres mais velhas não queriam deixar minha mãe, grávida, e eu por ser criança, vê-lo morto, mas como em nossa família nunca houve esse tabu, minha mãe levou-me para vê-lo pela última vez, mas não me lembro do que vi.

Depois disso, a vida de minha madrinha virou uma verdadeira batalha para criar os quatro filhos. Lavava, passava, fazia faxina, fazia crochê para vender e salgados para bares e restaurantes. Conseguiu fazer deles, pessoas de bem, honestas e trabalhadoras, que a apoiaram na velhice.

Quando idosa, embora humilde, vestia-se bem, sempre com roupas de cores alegres. Usava baton bem clarinho, pó de arroz Cashemere Bouquet e mantinha os cabelos, que eram bem curtos e completamente brancos, sempre com um tom azulado ou lilás, que realçava sua cor e dava-lhe um ar de distinção. Tinha bom gosto ao escolher suas águas de cheiro o que fazia com que fosse muito agradável abraçá-la.

Tinha escolhido e bem cuidado no guarda-roupa, o vestido longo com que deveria ser enterrada e um pedido à família: que não faltassem orquídeas em seu velório.

Pouco antes de ver o neto que ajudou a criar formar-se médico, faleceu devido a um câncer no estômago.

Ela vive em nossos corações, seja pelo tecido com que nos presenteou em determinado Natal e assim tivemos vestidos novos, seja pelo sagu de abacaxi que fazia e era a única coisa que minha mãe não gostava, ou pelo café, que gostava de tomar tirado diretamente do coador, fumegante... ou aquela toalha de crochê, que ainda resiste ao tempo... tantas pequenas coisas, que é difícil que se passe um dia sem que nos lembremos dela.

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