quinta-feira, 7 de junho de 2012

Mais lembranças da Casa Dom Macário

Já escrevi sobre a Casa D. Macário, na Vila Maria, onde lecionei e lendo, emergem mais fatos daquela época. 

Jamais esqueci um aluno em especial, o Washington, 7 anos, loirinho, olhos azuis, cútis e lábios manchados pela longa exposição ao sol. Era o caçula de três irmãos, também loiros e de olhos azuis, como a mãe. Esta, catarinense, descendente de alemães fora abandonada pelo marido com os três filhos pequenos. Sem conseguir emprego e lugar para morar acabou instalando-se na favela e vivia da garimpagem do lixão próximo dali. 

Algumas vezes dei carona uma freira que visitava as famílias daquela favela e lhes levava roupas, alimentos, remédios. 

Na entrada, tínhamos que deixar o carro, pois ali não havia ruas, mas vielas entre os barracos e no meio delas o esgoto que corria a céu aberto, à beira do qual crianças semi nuas, cachorros, aves, se misturavam numa imundície de partir o coração. 

Certa vez fomos ao barraco onde morava a família do Washington, pois ele não comparecia à escola há vários dias e fomos informadas que estavam doentes por lá. Era uma estrutura de paus, pouco mais alta do que eu, coberta com restos de plásticos, lonas e papelões, A porta era um pano dependurado e para entrar era só afastá-lo do caminho. Estava na área mais miserável da Favela Funerária. 

No espaço minúsculo não havia móvel algum e todos dormiam num amontoado de trapos no chão. Nas laterais, prateleiras improvisadas abarrotadas de plásticos, lavados precariamente e amarrados em pacotes exatamente iguais, ao lado de pilhas de embalagens tetrapac também amarradas em blocos. Nos entre meios dessa mercadoria à espera de comprador, pilhas de frutas e legumes em estado de decomposição, cobertos de moscas, também recolhidos do lixão para alimentar a família. 

 A mãe, judiada pelas intempéries, ainda guardava os traços da bela mulher que fora. Era culta e na ocasião escrevia poesias onde contava sua vida. Na época D. Afonso, o diretor da Instituição, tentava conseguir uma editora para a publicação de um livro com os escritos dela e quem sabe com isso ajudar no sustento da família. Saí de lá e não soube o final da história. 

No período da tarde, lecionava Educação Artística, Desenho Industrial e Geometria para as 5ª, 7ª e 8ª séries. A maioria dos meninos estava sob supervisão do Juizado de Menores ou em liberdade assistida. A disciplina de modo geral era boa, mas se necessário, um jovem monitor de classe assessorava no trato com os meninos rebeldes. 

Ao ser contratada, D Afonso deixou bem claro, que as aulas de Educação Artística deveriam funcionar como momentos de descontração para aqueles meninos tão massacrados pela vida. Deveria exigir respeito e disciplina, mas nunca cobrar formalmente os trabalhos. Assim, tentava fazer das minhas aulas um encontro, onde além de realizar algum trabalho artístico, conversávamos sobre artes e artistas e sobre o momento que estávamos vivendo – anseios, alegrias, tristezas, etc. 

Numa dessas aulas, no primeiro ano que ali trabalhei um garoto de 15 anos, da 8ª série, rebelde sem causa, me desafiava veladamente. Estávamos nos conhecendo, falando sobre nós mesmos, quando ele me perguntou onde eu morava. Não devia responder com exatidão, por motivos óbvios, mas não queria mentir, assim, ingenuamente disse que morava próximo ao Ibirapuera. Foi o suficiente para ele se levantar e começar a ironizar: 

 “Claro, toda madame mora perto de um lago! Deve morar numa daquelas mansões de frente para o parque. E vai querer “ensinar” pra gente! Deve ter um carrão com motorista...”.

Deixei-o falar. Quando parou perguntei se eu também poderia dizer alguma coisa. Ele, sempre ironizando, respondeu “claro, madame!”. 

Pedi-lhe então que, por favor, se sentasse e contei à turma um pouco da minha vida, desde as dificuldades para estudar, sendo filha de operário e sem recursos, até as dificuldades atuais e convidei-o a conhecer meu carrão – uma Brasília velha - sem a qual não conseguiria chegar às 7 horas da manhã naquela escola, onde realmente trabalhava por amor.

 No começo foi difícil, mas no meio do ano já sentávamos em círculo, conversávamos e eles até me contavam sobre seu dia a dia na favela, onde matadores executavam suas vítimas na frente de todos, colocavam-nas em carretos e jogavam às margens da Guarapiranga. Matadores esses, que eram os donos do lugar, temidos e amados por aquela pobre gente, que deles recebiam proteção e alguma ajuda nas vicissitudes e que nunca os denunciavam. Alguns, presentes até nos noticiários das grandes emissoras da época. Nada diferente do que se ouve e vê hoje em dia na mídia de uma forma tão banalizada que não surpreende e quase nem choca.

Um comentário:

  1. Realmente o mais triste é saber que tudo continua praticamente da mesma maneira.Triste situação .Mais uma realidade completamente esquecida por nossos governantes que mais pensam em encher, preencher, aumentar,acescentar....suas ricas contas bancárias.
    Mais uma vez é preciso reverenciar o mestre, o professor.
    Parabéns por todo o seu trabalho!

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