segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Do Artur para o Vô Velho


Ele era eterno, na verdade ele é, pois ninguém deixa de ser eterno.

Desde que me lembro ele estava lá, assim como a maioria, mas com ele era diferente. Era uma coisa meio pai, avô, tio a até irmão. Era Vô Velho... Quando penso nele as mesmas coisas tomam lugar na minha mente... o futebol com a bolinha de tênis de todo domingo, as histórias de trabalho, as infinitas perguntas de como vão os estudos, o que você vai fazer.

As últimas lembranças que tenho são as que mais definem ele. Nas últimas cinco vezes que o encontrei, a primeira pergunta foi a mesma, e aí como vai ser lá no Mato Grosso... - Vai ser bom vô, vai dar tudo certo, lé é bom...

Todas as vezes quis prometer que o levaria para pescar no pantanal, coisa que adorava, mas jamais prometeria a um grande amigo algo que sabia que não iria cumprir.

Sempre me perguntava como estava a Cynthia, pois acho que de tanto tentarmos ensiná-lo como se pronunciava e por causa da simpatia que não posso negar que a moça tem, ele queria falar o nome dela... - Tá bem vô, tá estudando, fazendo mestrado, depois vai fazer doutorado e virar professora, igual a Sid...

Nesse momento ele batia palmas e sorria, pois sem dúvida, para ele, o estudo era algo fascinante, talvez porque não o tivera. Mas nem precisava, sabia de quase tudo um pouco, e mais importante do que tudo, apesar dos eventuais erros que cometera com sua esposa e filhas, tinha caráter.

Me cumprimentava com um coquinho... sempre!!! Esse coquinho ficou famoso até em Viçosa quando um amigo teve a oportunidade de conhecer o seu Walter. Quando chegávamos a sua casa, meus irmãos e eu, fazíamos fila para o coquinho do vô. O último coquinho foi exatamente há uma semana, quando a trabalho, fui à São Paulo e passei lá para dar um oi. Dessa vez, quem deu o coquinho fui eu, pois ele já não tinha forças para levantar da cama.

A morte é inevitável e para ele foi um alívio. Me orgulho muito pois sei que lhe dei alegrias, assim como me deu muitas. E como não podia ser diferente, o coquinho do primeiro bisneto foi o último que ele deu antes de nos deixar.

Vô Velho, o Sr. estará pra sempre comigo, onde quer que eu vá... e pode ficar tranquilo que vai dar tudo certo, eu não disse?

domingo, 28 de outubro de 2012

Agora somos verdadeiramente órfâs


Meu pai faleceu sábado, dia 27 de outubro, depois de 88 dias nas garras de uma complicação pulmonar contra a qual lutou bravamente até a exaustão, quando seu coração de 92 anos, 9 meses e 22 dias não resistiu mais.

Homem rude e simples, temperamento forte herdado dos ancestrais germânicos e coração generoso onde circulava o sangue lusitano, viveu para o trabalho e a família e entre acertos e erros, apesar das dificuldades financeiras advindas de sua condição de operário metalúrgico criou e formou as três filhas até o ponto de alçarem voo com as próprias asas. 

Entre o trabalho assalariado até a aposentadoria e mais os anos de serviços prestados como consertador de fogões, chegou trabalhando ativamente até os 84 anos, quando um AVC lhe impôs o primeiro limite e ele descobriu que nem sempre estaria no comando das rédeas da vida. O primeiro baque. 

Nos oito anos que se seguiram tentou diuturnamente provar que não era um inútil, como na verdade se sentia, e sempre estava à cata se serviços, nem sempre condizentes com sua situação frágil. 
Superou um carcinoma no maxilar em 1991 e suportou durante os últimos quatro anos a lancinante dor da degeneração do nervo trigêmeo e até o último momento de consciência não aceitou a cruel, porém natural realidade da decrepitude. 

Não tinha escola mas não lhe faltavam conhecimentos, não tinha religião, mas acreditava em uma força superior acima de todas as coisas. Amava e respeitava profundamente a natureza. Gostava de pescar, ouvir valsas vienenses e tocar sua gaita alemã, que o acompanhou na internação, divertindo aqueles que o assistiam. 

Seu desgosto na vida, foi não ter tido um filho homem, mas não perdia a chance de dizer que suas filhas eram as melhores do mundo. 

Suas últimas palavras dirigidas a mim no leito de morte foram: “me dá um gole de água mãezinha”, gole tornado em gotas, que não saciou sua sede, mas aliviou meu coração ao vê-lo confundir-me com a figura de “mãe”, bem como minha mãe o fez em seus últimos anos. 

Agora somos órfãs, como disse minha querida irmã Sid diante daquele corpo à nossa frente, pela primeira vez em nossas vidas, totalmente em estado de repouso. 

Que a luz perpétua brilhe sobre o senhor, meu pai e que Deus lhe dê a paz que tanto buscou nesta vida terrena. 


Walter Walder:  05/01/1920 - 27/10/2012

Não encontramos palavras para agradecer a todos que nos confortaram durante este período difícil de nossas vidas e àqueles que o farão ao se inteirarem do ocorrido. Só Deus poderá recompensá-los.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Dia do médico - Uma homenagem póstuma.

Deveria homenagear diversos doutores em medicina, que passaram pela minha vida com competência e humanidade, mas serei injusta se relacionar nomes, pois sempre alguém será esquecido. Assim agradeço pessoalmente a cada um dos abnegados que nos atendem e pensando em todos, homenageio postumamente, um, em especial, por ter sido realmente muito especial.

Doutor Roberto Brólio, que  foi e sempre será o médico de família por excelência. Ainda jovem, por volta de 1947/48, realizou o complicado parto de minha tia-avó Ruth e a partir de então passou a atender a família Walder.

Na década de 60, quando meu avô debilitado pelo mal de Parkinson já não saía de casa, Dr Brólio o visitava, tratava-o com dedicação e por tabela consultava filhos, genros, noras e netos cobrando apenas o valor de uma consulta ao preço do consultório.

De origem humilde, formou-se na Faculdade de Medicina da USP. Era clínico geral, pneumologista, alopata e homeopata de acordo com a necessidade. Seu primeiro consultório localizava-se num conjunto modesto, na Praça da Sé, de onde saiu quando a região central de SP começou a deteriorar-se. Mudou-se então para o Itaim Bibi, onde esteve primeiro na rua Viradouro e posteriormente na rua Urussuí, onde ficou até encerrar suas atividades. Lecionou também no Curso Normal do Colégio Caetano de Campos.

Espiritualista sério e fervoroso, membro da Federação Espírita de SP e voluntário na Casa Transitória, exercia a medicina como um sacerdócio. Foi professor na Escola Paulista de Medicina e médico do Hospital das Clínicas até se aposentar. Bondoso, paciente, atualizado, profundamente conhecedor da natureza humana, recebia a todos em seu consultório com um abraço e os tratava de “queridos”. Aos mais aflitos consolava com sua famosa frase:

- Calma querido (a), daqui a 50 anos todos os seus males estarão curados.

 Nas consultas, sempre muito demoradas, tratava cada paciente como se fosse o único, preocupando-se com o corpo e a alma e não se importando com a sala de espera sempre lotada de clientes pagantes e não pagantes, que aguardavam pacientemente a sua vez. Sabiam que a espera seria recompensada e que ao atravessar aquela porta, a cura já começaria a se operar.

Dr Brólio também era escritor, escreveu entre outros, o livro “As doenças da Alma”.

Estive em seu consultório pela última vez em 1999, com minha mãe. Ele a consultou e em seguida conversou longamente comigo. Não foi uma conversa, mas um monólogo, somente ele falava. Em certo momento olhou-me profundamente nos olhos e disse: “Sua mãe está bem, você é que deve orar para ser forte, pois momentos difíceis a aguardam”. Meses depois, meu filho faleceu.

Foto de 1962, encontrada em http://ieccmemorias.wordpress.com/page/113/

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

“No hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça eu via...”

Não sei a quantas anda o Hospital do Servidor Público do Estado, a única vez que me utilizei dele, além do ambulatório, foi em 1995, numa situação de emergência e sem cobertura de um plano de saúde e fui muito bem atendida por um jovem residente de cabelos ruivos, que logo detectou o problema, pediu exames urgentes e me internou para cirurgia. E aí é que começa o sufoco.

Numa enfermaria de quatro leitos, na ala em reforma, logo descobri que do banheiro restava apenas o contra piso rústico e alagado pelo vazamento do vaso sanitário. Cheirava mal, mas tinha uma grande vantagem: era o único na ala que tinha água quente no chuveiro o que levava a uma desvantagem: todas as pacientes da ala vinham tomar banho ali, num entra e sai interminável.

Meu estado era grave (estava com mioma no útero e tinha hemorragia contínua), mas tinha um consolo: não morreria só. Além do movimento do banheiro, à noite, graças a uma gentil colega de quarto, este atingia sua lotação máxima. Pacientes de outros quartos e faxineiras. compareciam para o capítulo inédito da novela da Globo. Sentadas em nossas camas, apoiadas em suas vassouras e rodos, comentavam animadamente o desenrolar da trama. Só faltava a pipoca com guaraná.

Quanto à faxina, minha irmã providenciou o material necessário para que eu, embora conectada ao soro, providenciasse a desinfecção do banheiro.

Exames, vários dias de jejum, muita medicação e nenhum resultado, um belo dia, decidiram por transfusão de sangue e cirurgia imediata.

Chamei o capelão do hospital e pedi a Unção dos Enfermos para salvar a alma, o corpo já considerava perdido.

À tarde o Centro Cirúrgico vagou, bem na hora da visita. O hospital parecia um shopping center em véspera de Natal e em meio ao entra e sai, com jejum de quatro dias, sou conduzida por uma enfermeira, sem cadeira de rodas nem maca, vestida com um modelito nada pudico e carregando o pesado suporte de ferro do soro e, diante da perplexidade da minha filha, começo o desfile por aquele longo corredor repleto de transeuntes, quando uma hemorragia me obriga a parar.

Aos gritos de minha filha, uma cadeira de rodas aparece, jogam um lençol sobre a mim,  e, aos prantos dou entrada no CC, sob os olhares de reprovação do grupo de residentes que aguardavam para assistir a função e antes de subir na mesa de cirurgia, sem ajuda, ainda ouço o comentário de uma das mocinhas: “chorona, só porque é paparicada pela família, fica fazendo manha”.

A sala de cirurgia improvisada, compunha-se de mesa, alguns aparelhos, um balcão tipo pia do meu lado esquerdo, onde jaziam à minha espera dois frascos de sangue e do lado direito, prateleiras repletas de aparelhos de TV, vídeo, equipamentos e caixas empoeiradas.

Em um canto o grupo, uns quatro ou cinco, conversava animadamente, enquanto dois jovens simpáticos cuidavam da anestesia, que segundo eles seria um procedimento digno do hospital A. Einstein.

Anestesia raquidiana, pois o hospital não dispunha de peridural, como constataram na hora. Preparar, apontar e... nada! A anestesia não funcionou.

Replay. Não funcionou de novo. “Será que estavam vencidas?” sussurra um deles.

 “O que fazemos agora?”

“ Vai de geral” .

 “ Não pode, ela fez duas transfusões hoje!”

 “ Mas tem que ser agora!”. Está tudo preparado e sabe lá quando vai ter vaga de novo.

 “Onde estará meu residente de cabelos ruivos?!” Não fujo porque estou amarrada.

Olho para a porta aberta e vejo a janelinha de vidro da sala em frente e não sei por que me lembro da música do Amado Batista: “No hospital, na sala de cirurgia, pela vidraça eu via...”

Uma injeção na veia e quando abri os olhos estava numa maca em movimento, rodeada pela minha família. Não entendi nada. Só acordei de verdade, dois dias depois, quase sem poder me mexer e me sentindo muito mal, mas não estava só. As faxineiras continuavam ali, solidariamente assistindo a TV, sentadas em cima de nossos leitos e as colegas de quarto saboreavam as minhas sobremesas que se acumulavam sobre a mesa de cabeceira.

Estive ali durante nove dias. Dentro das limitações da falta de pessoal e apesar dos baixos salários, fui muito bem tratada pelos médicos e enfermeiras, só tendo a agradecer, pois após a cirurgia recuperei minha saúde.

Quatro dias depois da cirurgia, após assistir a agonia de uma das ocupantes do quarto, convenci o médico de que estava bem, me alimentando e com tudo funcionando (Mentira! Não fiz cocô nenhuma vez ali).

Consegui alta e saí numa cadeira de rodas. Só então, ao abrir a porta de casa, tive a real dimensão do quanto ela era limpa, acolhedora e que banheiro maravilhoso era o meu!

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Se fosse hoje, talvez não estivesse viva para contar...

Sou otimista, espero um futuro melhor, acredito que a vida é boa e “a felicidade até existe”, não curto desgraças, prefiro falar das rosas e ignorar os espinhos, mas a realidade está aí e de vez em quando a gente deixa de ser espectador e passa a protagonista. Foi o que aconteceu comigo no verão de 2002.

Avenida Brasil próximo a Rebouças, 18 horas e muitos minutos. Trânsito quase parado, calor insuportável. De carona com minha amiga Silvia, voltava para casa após um exaustivo dia de trabalho quando, paradas num semáforo, vidros burramente semiabertos, aparece não sei de onde, um garoto, encosta algo em meu rosto próximo à orelha e pede dinheiro.

Silvia apavorada pede calma e vira-se para pegar a bolsa. Escorrego a minha para debaixo do banco, a féria do dia do restaurante estava nela. Não sei por que, burramente, virei-me devagar e olhei de soslaio o que ele encostava no meu rosto. Era uma garrafinha de refrigerante com o fundo quebrado.

Num reflexo, segurei-lhe o pulso. Ele tentou trocar o objeto de mão e eu segurei o outro pulso, gritando para Silvia fechar o vidro dela e tentar fechar a janela do meu lado. Com as mãos para fora, segurando o menino com toda força que Deus me deu naquela hora, olhava desesperada para o semáforo que não abria.

A Silvia não conseguia fechar o meu vidro, pois os meus braços estavam sobre ele, agüentando o peso do menino que com o pé apoiado na porta do carro esforçava-se para atingir meu rosto com a garrafa e tentava morder-me as mãos.

Olhava para o rosto esquálido daquele menino de uns doze ou treze anos, desfigurado pela raiva e pela miséria e sentia um misto de pavor e pena. Pavor pela possibilidade dele atingir meus olhos e pena por ver o que um sistema injusto, que deixa as drogas correrem solto, consegue fazer com uma criança.

O semáforo abriu, a Silvia arrancou e eu larguei o garoto que rolou no chão e sumiu. Pouco adiante o trânsito pára novamente. Que pavor! Foi então que apareceu um jovem, para nos perguntar se precisávamos de ajuda, pois ele presenciara tudo. Todos os que estavam à nossa volta presenciaram tudo, mas ninguém se arriscou a sair da segurança de seu veículo, mesmo vendo que o garoto só empunhava uma garrafa e eu o segurava.

O incidente me custou alguns hematomas nos braços, torcicolo e mau jeito no tornozelo e à Silvia, a certeza de por um bom tempo não voltar para casa por aquele caminho!