domingo, 9 de novembro de 2014

Deu bode!

Lembrando passagens dos tempos vividos em Mogi das Cruzes...


EE Professora Sylvia Mafra Machado
Alto do Ipiranga - Mogi das Cruzes - SP

Rosário era um menino tranqüilo. Contava doze anos e sentia-se constrangido ao revelar seu nome. Promessa da avó. Avó que não era avó, pois o recebera de um freqüentador assíduo de seu bar, logo depois que abandonado pela mulher não sabia o que fazer com um filho ainda de colo. Deixou para que ela tomasse conta até resolver o que fazer da vida e nunca voltou.

Já em idade avançada, criou o menino como neto e como ele estivesse gravemente doente ao chegar, prometeu à santa de sua devoção, Nossa Senhora do Rosário, que lhe daria esse nome caso sobrevivesse. Não só sobreviveu, como cresceu forte e de boa índole, sendo para os avós, o consolo dos dias de sua velhice.

Frequentava a minha classe da quarta série quando o conheci. Esforçava-se muito, mas apesar disso não conseguia atingir um bom aproveitamento nas aulas de português. Havia algo errado com ele. Raciocinava direitinho, resolvia problemas, escrevia quase perfeitamente as palavras ditadas, mas não sabia copiar corretamente do quadro negro. Uma situação não catalogada nos manuais de didática. 

Não foi difícil concluir que ele não enxergava bem. 

Consegui com a direção da escola que fosse encaminhado ao setor de oftalmologia da Santa Casa e ali o enviaram para um hospital mais qualificado onde foi diagnosticado um mal irreversível que levava à cegueira progressiva. Urgente se fazia encaminhá-lo para continuar os estudos, numa instituição especializada que o qualificasse para enfrentar a inevitável situação de portador de deficiência visual.

Ao terminar o período letivo, no dia da festa de encerramento das aulas e de sua despedida daquela escola, lá vem o Rosário com um presente para mim. Dentro do bonito pacote encontro o couro curtido, de um animal que em princípio não identifiquei, mas que ele logo foi explicando se tratar de um bode. Do seu bode de estimação que morrera atropelado em frente ao bar dos avós e cujo couro mandaram curtir e guardara de lembrança. Falava e mostrava um rasgo, a causa mortis do animal.

Tentei recusar aquele mimo tão precioso, mas não teve jeito. 

Rosário foi para uma escola especializada, capaz de capacitá-lo a sobreviver apesar da deficiência, e, nos anos seguintes aquele tapete de couro de bode decorou meu quarto até que se desintegrou pela idade. Com pesar me desfiz do que sobrou dele, mas jamais esquecerei aquele aluno, um menino especial desde as origens.


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