quarta-feira, 12 de novembro de 2014

A estação

A escada rolante vomita gente em profusão na já abarrotada plataforma da estação Sé, do Metropolitano de São Paulo. As pessoas se comprimem, como se aquela composição que estava para chegar representasse a última esperança de cada um.

Nos rostos contraídos pelo frio da noite que lentamente envolve a cidade, adivinha-se a história de cada vida que ali deságua como a compor o delta de um caudaloso rio.

O cansaço e o desalento impressos nas faces sofridas do trabalhador, que depois de um longo e exaustivo dia de labuta, leva para o aconchego desconfortável do lar uma única certeza: mais uma vez enfrentará os que o aguardam de mãos quase vazias. Alguns, cheirando a álcool, expressam em seus semblantes maltratados, já terem extrapolado os limites da resistência.

Jovens estudantes, retornando ou se dirigindo às escolas. Uns bem apessoados e confiantes, sorrindo com suas belas jaquetas e seus tênis de marca; outros, já marcados pela curta e sofrida existência, tentando manter viva a chama da esperança que um diploma pode significar. Todos igualmente com um futuro a construir.

Alguns executivos, raros, tensos, engravatados e empacotados em seus ternos, aguardam o trem com ar de superioridade, como se não fizessem parte daquele contexto. Simplesmente estão não são personagens desse cenário.

Correndo aqui e ali, algumas crianças de rua, poucas, nessa bem vigiada estação, mas que não escapa aos furtos de oportunidade. Indesejáveis, sujas e esfarrapadas, brincam de brincar, com sacos plásticos lambuzadas de cola de sapateiro bem seguros nas mãos. Chagas abertas da sociedade.

A composição chega e como autômatos, todos seguem num sentido único, com movimentos uniformes e coordenados. São bailarinos de uma coreografia urbana, que dura alguns segundos.  Ao abrirem-se as portas já não são mais pessoas que a compõem, mas uma manada desordenada que se comprime, acotovela-se, atropela-se. Irracionais, aglutinados, solitários na mesquinhez ávida da busca do melhor lugar.


O trem parte carregando em seu ventre o vômito das escadas rolantes que será distribuído pelos vários pontos da cidade deixando atrás de si a certeza de que, para muitos, a vida nada mais é do que um imenso e triste trem, onde todos e cada um buscam seu espaço, juntos, mas não solitários, atropelando-se uns aos outros, e por mais que tentem e lutem, muitas vezes não chegam a lugar nenhum a não ser a Estação Morte.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Enfim sós!

Fazia tempo, muito tempo, talvez uns seis anos ou mais. 

Não que fosse uma paixão, seria algo assim como saudades de um amor antigo, vivido numa época de inocente felicidade. Só sei que precisava revê-lo. Precisava me dar a oportunidade de ser eu mesma a seu lado. 

Naquela mesa, frente a frente, me redescobria como pessoa, indivíduo liberto da relação siamesa que tenho vivido nos últimos tempos. Sim, era eu! Eu mesma capaz de tomar a decisão de estar ali e fazer uma escolha. 

À medida que interagíamos, as sensações faziam aflorar emoções adormecidas, gratas lembranças, uma viagem no tempo.O dia estava glorioso, quente, ensolarado, convidativo para uma esticada naquele momento, ir além. 

Da janela a vista não era das mais bonitas. Onde encontrar uma bela vista nesta cidade caótica, onde para qualquer lado que se olhe só se vê carros, carros e carros. Mas isso não importava. Nós estávamos juntos e o momento era perfeito, revigorante. 

O tempo corria implacável e a hora de voltar ao mundo real já se deparava à minha frente. Aos poucos ele desaparecia diante dos meus olhos como que diluído por uma voracidade faminta e insaciável. Seus atributos, um a um ainda se faziam presentes e despertavam meus sentidos, mas era chegada a hora da despedida.

Assim, depois de saborear um refrescante sorvete de casquinha, saí levando junto ao coração, ou quase, um apetitoso Big Mac.

domingo, 9 de novembro de 2014

Deu bode!

Lembrando passagens dos tempos vividos em Mogi das Cruzes...


EE Professora Sylvia Mafra Machado
Alto do Ipiranga - Mogi das Cruzes - SP

Rosário era um menino tranqüilo. Contava doze anos e sentia-se constrangido ao revelar seu nome. Promessa da avó. Avó que não era avó, pois o recebera de um freqüentador assíduo de seu bar, logo depois que abandonado pela mulher não sabia o que fazer com um filho ainda de colo. Deixou para que ela tomasse conta até resolver o que fazer da vida e nunca voltou.

Já em idade avançada, criou o menino como neto e como ele estivesse gravemente doente ao chegar, prometeu à santa de sua devoção, Nossa Senhora do Rosário, que lhe daria esse nome caso sobrevivesse. Não só sobreviveu, como cresceu forte e de boa índole, sendo para os avós, o consolo dos dias de sua velhice.

Frequentava a minha classe da quarta série quando o conheci. Esforçava-se muito, mas apesar disso não conseguia atingir um bom aproveitamento nas aulas de português. Havia algo errado com ele. Raciocinava direitinho, resolvia problemas, escrevia quase perfeitamente as palavras ditadas, mas não sabia copiar corretamente do quadro negro. Uma situação não catalogada nos manuais de didática. 

Não foi difícil concluir que ele não enxergava bem. 

Consegui com a direção da escola que fosse encaminhado ao setor de oftalmologia da Santa Casa e ali o enviaram para um hospital mais qualificado onde foi diagnosticado um mal irreversível que levava à cegueira progressiva. Urgente se fazia encaminhá-lo para continuar os estudos, numa instituição especializada que o qualificasse para enfrentar a inevitável situação de portador de deficiência visual.

Ao terminar o período letivo, no dia da festa de encerramento das aulas e de sua despedida daquela escola, lá vem o Rosário com um presente para mim. Dentro do bonito pacote encontro o couro curtido, de um animal que em princípio não identifiquei, mas que ele logo foi explicando se tratar de um bode. Do seu bode de estimação que morrera atropelado em frente ao bar dos avós e cujo couro mandaram curtir e guardara de lembrança. Falava e mostrava um rasgo, a causa mortis do animal.

Tentei recusar aquele mimo tão precioso, mas não teve jeito. 

Rosário foi para uma escola especializada, capaz de capacitá-lo a sobreviver apesar da deficiência, e, nos anos seguintes aquele tapete de couro de bode decorou meu quarto até que se desintegrou pela idade. Com pesar me desfiz do que sobrou dele, mas jamais esquecerei aquele aluno, um menino especial desde as origens.


sábado, 8 de novembro de 2014

O sabor das lembranças

Hoje me deu uma vontade louca de comer Mantecal. Não sei se foi porque sonhei com a minha mãe na cozinha mexendo nas panelas ou se bateu saudades da avó Asunción, que falava uma mistura de português com castelhano, muito engraçada, só sei que comprei os ingredientes e botei a mão na massa.

É um dos doces mais simples de fazer, doce de pobre, como dizia a minha mãe, pois segundo ela, era o único doce de que se lembrava da infância vivida nas fazendas de café, em Itápolis, interior de São Paulo, onde seus pais, imigrantes espanhóis eram colonos. Ela falava também do pão, este de sal, caseiro feito pela mãe, no forno de barro, primeira coisa a ser providenciada quando chegavam a uma nova moradia.

Mantecal, doce feito com “manteca”, ou seja, manteiga, gordura, nata, segundo o dicionário espanhol. Mas em nossa família ele sempre foi feito com gordura suína, a original e é assim que eu gosto.  É assim que ele tem gosto de infância pra mim. E sem enfeites por cima, estes lhe alteram o sabor. Gosto deles simples.

Enquanto fazia, lembrava-me da minha avó. Não tivemos muito convívio, ela e meu pai não se davam bem, mas de vez em quando nós nos visitávamos. Não parecia uma avó segundo os padrões de então. Era muito ativa, trabalhou fora até idade avançada e depois sempre estava na casa de um ou de outro ajudando nas dificuldades do dia a dia. Gostava de “bater pernas” como dizia.

Viúva há muito tempo, casou-se em segundas núpcias com um senhor italiano, quieto, retraído e a mim me parecia que nada tinham em comum. Impressões de criança...

Viúva novamente voltou a morar com o único filho e aos 75 anos faleceu devido à hemorragia de uma úlcera, ao ser atendida no pronto socorro. Foi em 1975, eu morava em Mogi das Cruzes, tinha três filhos, acabara de me mudar para uma nova casa onde muita água rolaria por debaixo da ponte, depois, porque naquele momento, era agosto e o poço estava seco.

Lembranças em dia, agora é matar a vontade e saborear os Mantecais com um bom chá de hortelã.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

A ÚLTIMA VIAGEM

Naquela manhã de segunda-feira, Marco Aurélio acordou muito cedo, antes do alarme do rádio-relógio disparar. Sentou-se na cama, espreguiçou-se demoradamente, sentindo cada molécula de seu corpo dolorido despertar. Achou-se leve, estranhamente leve. 

Vestiu-se com esmero. Seria um dia muito especial. Na cozinha, enquanto saboreava o delicioso café que a mãe deixara preparado, estranhou o silêncio da empregada. Sentada a um canto, cabisbaixa, parecia não notar sua presença. Nem respondeu ao bom dia amistoso que lhe dirigiu. Como nos últimos dias atormentara a pobre, com seu comportamento imprevisível e suas explosões de mau humor, entendeu seu silêncio como uma atitude defensiva. Afinal, ela devia estar com receio até de olhar para ele. 

Antes de sair, olhou-se mais uma vez no grande espelho da sala de jantar, analisando cada detalhe de sua aparência. Mesmo magro e abatido, pelo excessivo consumo de drogas e bebidas, ainda era uma bela figura de adolescente, no auge de seus dezoito anos. “- Um partidão!”- como diria a avó coruja. 

Saiu de casa pensando em como essa vaga de operador de micro, que o pai conseguira na empresa de um amigo, poderia ser o primeiro passo para a realização de um antigo sonho: trabalhar com computação gráfica numa grande agência de publicidade. 

No caminho refletia sobre sua vida. Mudara tanto nas últimas semanas! Voltara a estudar, conhecera a Mara, uma “verdadeira princesa”, e hoje começaria a trabalhar, fazendo o que mais gostava. Já pensava até em pedir ajuda aos pais, para quiçá, fazer aquele tratamento que eles tantas vezes sugeriram... 

Uma coisa era certa: deixaria os amigos das farras. A última noite havia sido terrível! Bebidas, muito “fumo” e alguns “tiros”. Enlouquecera. Em sua mente, a lembrança dos móveis movendo-se pelo quarto e da sujeira espalhada pelo chão andando de um lado para outro misturava-se com os risos frenéticos dos amigos - amigos?! - que se distanciavam em câmera lenta, assustados, enquanto lhes estendia os braços, apavorado implorando ajuda. Depois... um vazio imenso! 

Caminhava tão absorto em seus pensamentos, que se surpreendeu ao chegar ao seu destino, tão depressa e sem cansaço. Estranhou... Em lugar de um edifício de escritórios, encontrou apenas um grande portão de ferro, fechado. Conferiu o número. Estava certo. Procurou uma campaínha, um interfone. Nada. 

Apesar da névoa daquela manhã de inverno, pôde perceber por trás daquelas grades, algumas pessoas que caminhavam lentamente, cabisbaixas. Talvez chorassem. Pensou até ver entre os primeiros do cortejo, seu pai, sua mãe, parentes, amigos (os verdadeiros) que há muito não via. Tentou entrar, mas o portão não se abriu. Chamou pelas pessoas lá dentro, ninguém o atendeu. 

Confuso, voltou-se para procurar um telefone público e, quem sabe, ligar para o escritório do pai e esclarecer aquela situação, quando viu à sua frente, em uma banca de jornais, estampada na primeira página de um jornal sensacionalista, sua foto e uma manchete em letras garrafais:

“MÃE ENCONTRA O FILHO MORTO, AO ABRIR O QUARTO, DOMINGO DE MANHÔ.

A Galeria Prestes Maia


Vale do Anhangabaú 1970

A Galeria Prestes Maia é uma passagem subterrânea que liga o Vale do Anhangabaú à Praça do Patriarca e a memória que tenho é dos tempos que passava por lá, antes das reformas dos anos 80. 

Um caminho estratégico para quem ia da zona sul de São Paulo para o centro.   Os pontos dos ônibus ficavam no Vale, acompanhando a lateral da Praça Ramos de Azevedo de onde se avistava o Teatro Municipal, a Agência Central dos Correios e o Viaduto Santa Efigênia.  Boa parte desses pontos estavam sob o Viaduto do Chá.


A Praça do Patriarca, com a tradicional igreja de Santo Antônio, dava acesso às principais ruas do centro, onde se encontrava praticamente de tudo que precisávamos. E na época não existia aquele portal que nada tem a ver com o estilo dos prédios daquela área.


Praça do Patriarca - foto de Benedito J Duarte

Geralmente ia ao centro uma vez por mês para comprar o passe escolar. A agência da CMTC ficava dentro da Galeria Prestes Maia. Nessas ocasiões aproveitava para visitar as exposições itinerantes que ali eram montadas.  Raros momentos de cultura e lazer. Era também ali, que acontecia periodicamente a feira de ciências com exposição de trabalhos de alunos das escolas estaduais. Por dois anos me orgulhei de ver ali expostos desenhos feitos por mim da anatomia de algum animal. Gostava muito de desenhar minuciosamente o interior dos bichos, que encontrava em livros da biblioteca da escola, ampliava e reproduzia sobre cartolina nas cores originais, causando admiração nos meus mestres e colegas.

Saindo da Galeria Prestes Maia numa tarde em que fui comprar o passe escolar, aguardava na calçada para atravessar as pistas sob o viaduto, quando ouço um baque seco, como um coco se quebrando. Olho para o lado e, a poucos metros de onde me encontrava, um homem, com a cabeça achatada, se contorcia agonizando.  Havia se jogado do Viaduto do Chá. Um suicida.

Eu devia ter meus 14 ou 15 anos, antes disso não ia só ao centro, mas só me lembro de ter corrido para longe dali, procurado outro lugar para atravessar e que já dentro do ônibus na volta para casa, tremia muito.

Foi ali, também, na Galeria Prestes Maia, que em 1964, soube que um golpe militar havia acontecido durante à noite, ao indagar sobre a presença de tanques fechando ostensivamente aquela passagem e me impedindo de comprar os passes.



Entrada da Galeria Prestes Maia no Vale do Anhangabaú