quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

São Paulo aos poucos...


Em 2003 conheci o site sp450.com, criado por Juliano Spyer para homenagear os 450 anos da cidade de São Paulo e posteriormente denominado vivasp.com. Já escrevi e falei muito sobre isso e, às vésperas de mais um aniversário desta cidade que amo e odeio ao mesmo tempo, não posso deixar de lembrar que graças àquele projeto e ao grupo que a partir dele se formou, tive a oportunidade de conhecer um pouco mais desta cidade.

Em fevereiro de 2004 tivemos um encontro dos escritores do site, no Pátio do Colégio e não poderia ser em outro lugar. A partir daí, encontros e passeios pela cidade se sucederam e uma São Paulo nova se descortinou ante meus olhos e gostei de tudo que vi. E não consegui participar da metade das atividades presenciais do grupo. 

Os encontros no auditório da secretaria de Estado da Justiça, no Pátio do Colégio com as investidas em seus diversos ambientes, o deslumbramento na Sala dos Anjos, assim chamada pela pintura no teto; a visita à cobertura do Edifício Martinelli, que sempre comove, afinal é um local histórico, fruto do idealismo de um realizador que acreditou no impossível para a época.

O passeio ao Cemitério da Consolação com direito a guia e a presença de Fiammetta Emendabili, filha de Galileo Emendabili, idealizador do Obelisco do Ibirapuera e que assina importantes esculturas naquela necrópole.
 


As tardes de sábado na Casa das Rosas, a contação de histórias perpassadas de memórias de um tempo quase encantado. De repente, o encanto se faz presente e temos um sarau com o maestro Mario Albanese e seus músicos e a tarde se faz pequena.


Um tour pelo bairro da Liberdade, almoço em restaurante típico japonês e visita à "Casa Cor da Rua"   



“Criada pela Irmã Ivete de Jesus, 61 anos, esta mostra ocupa uma casa de 600 metros no Glicério, mais precisamente na Rua dos Estudantes, 483. Mais de 90% dos móveis e acessórios à venda foram criados com material recolhido do lixo. Portas viraram mesas, calotas de carro, encostos de cadeiras, latas de sardinha, chuveiros, latas de leite, tudo é tirado do seu contexto de material descartado, e elevado ao nível do utilitário, a até mesmo da obra de arte, por que não? Com o tanto de lixo que está na Bienal, por que não usar o lixo para criar peças de uso, como as latas de leite, que viraram lixeiras decorativas, e estão sendo exportadas para a Itália!” (Anna Boni). Mais Casa Cor da Rua


Visita ao Museu de Arte Sacra, Estação e Jardim da Luz, Pinacoteca do Estado.


As igrejas do centro, com acesso ao interior da cripta da Catedral metropolitana da Sé, a região da 25 de março, almoço no Mercado Municipal da Cantareira, tudo em um dia só. Passeie nesse passeio.



Incursão à tradicional Freguesia do Ó e à não tão conhecida cidade fantasma de Vila Cruz das Almas, com histórias e mistérios. Confesso que de lá, voltei para casa envergonhada por descobrir que tendo nascido nesta cidade, vivido aqui praticamente toda minha vida, não a conheço. Freguesia do Ó, para mim até então, era apenas um nome em placas, letreiros de ônibus e de uma ponte sob qual passo quando transito pelas marginais do Rio Pinheiros. 

Ao lado de espigões fincados aqui e ali que denunciam a especulação imobiliária que já se impõe maculando a paisagem de um bairro quase tão antigo quanto à cidade, com características próprias, plantado no sobe e desce dos íngremes morros e na sinuosidade dos caminhos, um bairro com história, tradições, raízes. 

Gente que se conhece e se abraça nas ruas. Idosos que se encontram nas praças para o dominó, a malha e para jogar conversa fora. Trilhamos velhos caminhos com novos nomes e novos caminhos com velhos nomes. Igrejas, capelas, modernas escolas e uma biblioteca municipal pedindo socorro para sobreviver. 


Uma cidade fantasma de cortar o coração ao pensarmos que em uma época não muito distante, naquele cinema pessoas riram, choraram, se emocionaram com os personagens da telona, que amores ali nasceram e crianças vibraram com os seriados das matinés. De cortar o coração ao ver a bela construção da igreja fantasma, deteriorando-se sob as intempéries.




Na Vila Maria Zélia, encravada na zona leste, entre o Belém e o Bresser, vila operária auto suficiente construída pelo empresário Jorge Street, no início do século XX , para moradia dos operários de sua empresa , a Companhia Nacional de Tecidos de Juta, encontramos o Dedé, que nos acompanhou no passeio. Ele que foi parceiro do Adoniran nas "Histórias das Malocas" e que tem muita história pra contar.




A grande atração da vila é a sua arquitetura, com seus prédios que preservam as linhas baseada nas cidades européias do início do século XX e isto se confirma com as inúmeras gravações de filmes e novelas, de época, ali rodados. Entre estes, "O Corintiano" ou "No País dos Tenentes". Em 1992 a vila, suas ruas, casas e prédios foram tombados (pelo município e o estado de São Paulo) pelo raro traçado urbano.



Confraternização de final de ano no Jaraguá, em 2006, com divertida narrativa da amiga Asunción.




Apesar da chuva e do frio, aquele sábado visitando a A.P.A .Capivari Monos, no extremo sul da cidade, próximo a Engenheiro Marsilac, foi um capítulo a parte da nossa jornada paulistana.



Caminhando naquelas trilhas barrentas em meio à Mata Atlântica, diante da profusão das águas cristalinas que formam a reprresa de Guarapiranga, nem dava pra acreditar que estávamos na mesma cidade de onde partíramos, no SESC Carmo, ao lado da Sé e da Rangel Pestana.



Navegar pelo Rio Tietê com o pessoal do vivasp no lançamento do livro das pinturas do Edu das Águas, uma experiência para poucos. 



Perdi vários passeios, mas virtualmente participei de todos, viajando nos relatos de tantos e bons amigos, que unidos pelo amor à cidade, sempre fizeram questão de compartilhar cada experiência vivida nessas jornadas.

Jornadas pela cidade que é uma fonte inesgotável de vielas, becos, quintais sombrios e jardins surpreendentes, mesas ao pé de jabuticabeiras produtivas e jatobás repletos de frutos à beira da avenida selvagem, atalhos que nos levam a lugar nenhum e ruelas sem saída com jardineiras floridas ao fundo, morros e vales fervilhantes de vida e novidade, suficientes para surpreenderem muitas vidas se mais do que uma tivéssemos. 

São Paulo 459 anos - Parabéns!

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

14 de Julho de 1999. Quarta-feira, dia de visita

"A escrita é uma aventura perigosa. Nela o coração humano se registra e se revela." Pe. Fábio de Melo

Existem coisas difíceis de lembrar, de falar. Impossíveis de esquecer. Quando escritas, parecem que não aconteceram com a gente. É como tomar Lexotan: você sabe que foi com você, mas parece que não foi, que assistiu, viu em algum lugar... 

O que segue é, para mim, uma dessas coisas. 

14 de Julho de 1999. Quarta-feira, dia de visita. A fila permeia o longo pátio lúgubre e fétido, contornando a parede suja e depredada da DP.

Só mulheres. Bonitas, feias, jovens, velhas, alegres, tristes, barulhentas, taciturnas, bizarras e até felizes. Mães, esposas, namoradas, amantes ou solidárias prostitutas. Uma quarta-feira por mês, mas não nesta, é permitida a entrada de crianças. Nesse dia tudo é festa com direito a doces e balões de gás. 

Nos olhares ansiosos dirigidos à porta de acesso à carceragem, as marcas de noites insones e lágrimas derramadas. O burburinho das conversas veladas sobre o andamento dos processos e outros assuntos de interesse comum mistura-se ao farfalhar dos plásticos e papéis manipulados nervosamente no afã dos últimos preparativos. 

Sapatos e calças compridas não são permitidos, assim, aquelas que não conhecem a regra voltam dali mesmo e algumas retardatárias trocam de roupas na fila e até entram descalças. Existe apenas um banheiro, não há tempo a perder e o lugar deve ser garantido. 

Excitadas com a eminência do contato íntimo, algumas falam sem parar, enquanto ajeitam os cabelos e retocam o baton. Algumas resmungam palavras de baixo calão devido à demora e às condições; outras, as mais idosas, arrastam-se lentamente, arcadas sob o peso das sacolas - o Jumbo. Quase todas se irmanam na dor comum. 

Quando finalmente a porta se abre, uma brisa de ânimo nos impele para frente, num movimento uniforme. Na outra ponta, a fila já atinge a rua. Uma ordem, o movimento cessa. A delegada de plantão, doutora Izilda ordena aos gritos, a limpeza do local antes de liberar a entrada. Só é permitida a entrada dos produtos em embalagem transparente, assim coisas compradas na última hora, são desembaladas apressadamente, deixando o chão repleto de papéis e plásticos em contato com a água que vaza do esgoto. Alguém pede uma vassoura. Com o comentário infeliz de que “quem tem um parente preso não pode fazer exigências”, ela nega. 

O tempo escoa. Sem opção, recolhemos rapidamente o lixo com as mãos, entramos identificando-nos ao investigador de serviço e entregando a Ficha de Visita, um documento com nossos e uma foto 3x4, e em grupos de quatro, submetemo-nos à degradante, necessária e inútil revista das policiais femininas e posteriormente submetemos à vistoria dos investigadores na última barreira, as coisas que trouxemos e que a seu bel prazer permitem ou não que sejam entregues. 

Detectores de metais são utilizados nos produtos. Garrafas pet abertas e cheiradas. Pacotes de doces ou potes de margarina, espetados com a mesma faca imunda com que retalham as pedras de sabão e os sabonetes. Talheres e copos, só de plástico. Barbeadores e seringas descartáveis passam. 

Em direção à gaiola, num corredor em penumbra, duas ou três jaulas, não me lembro, grades nos quatro lados. Uma delas ocupada por um espectro grotesco de um jovem. Deve ter cometido estupro, ou estar marcado para morrer, motivos que justificam o isolamento. Esconde o rosto à nossa passagem. Uma visão bestial. À frente a claridade oriunda do pátio, precedido da gaiola, um cômodo cercado de grades que dá acesso à carceragem e de onde já se pode ver no exíguo espaço que deveria abrigar 30 ou 40 detentos, mais de 150 homens aglomerados. 

Com a mesma ansiedade no olhar, delinqüentes de todos os níveis de criminalidade, jovens, velhos, bonitos, feios, de todas as raças, credo e cor, buscam entre as que chegam, um rosto familiar. Muitos nunca recebem visita. Limpos, barbeados e cheirando a sabonete barato, também eles estão travestidos para aquela pantomima. 

Nos barracos - as celas de confinamento - mantas e cobertores limpos, estendem-se em varais improvisados. São biombos que dividem o pequeno espaço das celas – em número de 5 - em compartimentos minúsculos, onde com a privacidade possível, recebem suas visitas íntimas.Uma das celas não é utilizada para a visita íntima, para que o “boi”, vaso sanitário fique disponível.

No espaço comum, aqueles que recebem a visita das mães, conduzem-nas e acomodam-nas em meio à aglomeração. Ali, sentados no chão, um diante do outro, olhos nos olhos, interagem conforme o momento e a vigilância dos companheiros lhes permite, como se o tempo parasse e os delitos que levaram a essa situação nunca tivessem acontecido, o futuro não existisse e tudo não passasse de um pesadelo.

Enquanto isso, os que não recebem visita preparam o café e o servem com guloseimas que quase todos receberam nesse dia. 

Ao toque cruel de uma sirene, finda-se a visita. O pano desce e sem aplausos seguimos para nosso dia-a-dia, cientes de que representamos bem nosso papel naquele ato, mas que a tragédia jamais terminará. 

Nesse dia, foi a última vez que vi meu filho com vida. Apavorado, degradado, com os braços marcados pelo uso de drogas injetáveis, ainda me disse: 

-Mãe, não tenha vergonha, você não tem culpa de nada do que eu fiz.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Padrinhos - Pessoas especiais...

No dia 6 de janeiro – Epifania do Senhor – celebro meu aniversário de Batismo, realizado na Igreja N S Aparecida de Moema, SP. A efeméride me levou a resgatar o que já escrevi sobre meus padrinhos, em parte sabido pela minha mãe e muito composto de lembranças próprias.

Minha madrinha era uma gaúcha, filha de escrava com português. Era mulata, alta, talvez da minha altura, cabelos levemente crespos. Quando jovem, sofreu muito com as insanidades da mãe, que bebia e tinha distúrbios mentais, a ponto de despejar o urinol sobre a cabeça de seresteiros que em noites enluaradas faziam serestas à sua janela, matando-a de vergonha.

Veio para São Paulo e casou-se com um belo jovem louro de olhos azuis. Tiveram cinco filhos, todos tão diferentes um do outro, devido à miscigenação, que sequer pareciam parentes. O primeiro Roberto, não conheci, morreu antes do meu nascimento, era negro, como seu ídolo no futebol: o Baltazar e esse era seu apelido no time da turma da criançada da Vila Indiana. Arrancou um dente, jogou futebol escondido da mãe – que estava no trabalho – a tarde toda, debaixo de um sol escaldante. Teve febre alta e foi constatado meningite. Quando o antibiótico chegou ao aeroporto de Congonhas ele já estava sendo velado.

O segundo, Antonio, moreno, participava de campanhas políticas e acabou sendo agraciado com o cargo de fiscal de feira na eleição em que seu candidato saiu vitorioso. O outro, João, louro sarará de olhos azuis, era, com a mãe, padrinho da minha irmã Jussara. Depois vinha a Cida, única filha mulher, morena e linda e por fim o Getúlio, que tinha esse nome em homenagem ao então “Pai dos Pobres”, que minha madrinha venerava, tanto que sempre manteve um retrato do ditador/presidente, num quadro, na parede da sala.

Foi quando amamentava esse menino, no início da década de 40, que estreitou seus laços de amizade com minha mãe, cuja família já conhecia do bairro de Indianópolis. Nessa época, dona Izabel, assim se chamava minha madrinha, era ama de leite de um menino filho de uma família judia do bairro. Chegou até eles por indicação do Dr. Maurício, pediatra da Cruz Vermelha, ali na atual Avenida Ruben Berta.

Contava ela, que ao apresentar-se à mãe do garoto, prematuro, que se não se alimentasse de leite materno morreria, a mãe começou a chorar compulsivamente. Ela não entendeu nada, mas, mais tarde, soube através da própria mãe, que naquele momento temera que seu filho sendo amamentado por uma negra, se tornasse negro também e na manhã seguinte foi ao consultório do pediatra para tirar essa dúvida, fazendo-o rir muito. Tornaram-se amigas e minha madrinha sempre contou com a ajuda daquela família.

Como a patroa precisava de alguém para fazer-lhe companhia e ajudar com os cuidados do frágil bebê,  dona Izabel indicou minha mãe para a tarefa, que lá ficou até 1943 quando a família se mudou para a Brigadeiro Luiz Antonio e ela, estando para se casar, não acompanhou.

Dona Izabel e minha mãe permaneceram grandes amigas. Ela foi testemunha do casamento civil de minha mãe e quando nasci foi a escolhida para madrinha de batismo. Foi também madrinha de batismo da Jussara, minha irmã mais nova e de Crisma da Sid, a do meio, pois como concordavam as duas comadres, ela deveria ser madrinha de todas nós, tão grande era a amizade e consideração entre elas.

Enquanto viveu, sempre nos visitou atenta ao nosso desenvolvimento, presenteando-nos nos natais e aniversários, alegrando-se com nossas alegrias e solidarizando-se com nossas dificuldades. Foi ela também, junto com minha madrinha de Crisma, testemunha de meu casamento civil.

 Lembro-me que todas as vezes que vinha em nossa casa, trazia um delicioso bolo de fubá com erva-doce e canela com açúcar por cima. Jamais experimentei um bolo de fubá tão bom como aquele. Embora tivesse apenas um rim, tomava caipirinha e cerveja, quando saía com as amigas. Curtir as amigas, sair a passeio ou às compras com elas, sempre se constituiu para ela motivo de grande prazer.

Meu padrinho faleceu quando eu tinha 4 anos, vítima de um infarto. Apenas me lembro dele abaixado, segurando minhas mãos, com o rosto bem próximo ao meu e aqueles lindos olhos azuis olhando os meus e dizendo que crianças têm o hálito dos anjos. Depois me mandava recitar a “Batatinha quando nasce”, que eu sabia de cor desde meu primeiro ano de vida e sorria satisfeito.

No dia de seu velório, realizado em casa, lembro de que as mulheres mais velhas não queriam deixar minha mãe, grávida, e eu por ser criança, vê-lo morto, mas como em nossa família nunca houve esse tabu, minha mãe levou-me para vê-lo pela última vez, mas não me lembro do que vi.

Depois disso, a vida de minha madrinha virou uma verdadeira batalha para criar os quatro filhos. Lavava, passava, fazia faxina, fazia crochê para vender e salgados para bares e restaurantes. Conseguiu fazer deles, pessoas de bem, honestas e trabalhadoras, que a apoiaram na velhice.

Quando idosa, vestia-se bem, sempre com roupas de cores alegres. Usava baton bem clarinho, pó de arroz Cashemere Bouquet e mantinha os cabelos, que eram bem curtos e completamente brancos, sempre com um tom azulado ou lilás, que realçava sua cor e dava-lhe um ar de distinção. Tinha bom gosto ao escolher suas águas de cheiro o que fazia com que fosse muito agradável abraçá-la.

Tinha escolhido e bem cuidado no guarda-roupa, o vestido longo com que deveria ser enterrada e um pedido à família: que não faltassem orquídeas em seu velório.

Pouco antes de ver o neto que ajudou a criar formar-se médico, faleceu devido a um câncer no estômago.

Ela vive em nossos corações, seja pelo tecido com que nos presenteou em determinado Natal e assim tivemos vestidos novos, seja pelo sagu de abacaxi que fazia e era a única coisa que minha mãe não gostava, ou pelo café, que gostava de tomar tirado diretamente do coador, fumegante... ou aquela toalha de crochê, que ainda resiste ao tempo... tantas pequenas coisas, que é difícil que se passe um dia sem que nos lembremos dela.