Existem coisas difíceis de lembrar, de falar. Impossíveis de esquecer. Quando escritas, parecem que não aconteceram com a gente. É como tomar Lexotan: você sabe que foi com você, mas parece que não foi, que assistiu, viu em algum lugar...
O que segue é, para mim, uma dessas coisas.
14 de Julho de 1999. Quarta-feira, dia de visita.
A fila permeia o longo pátio lúgubre e fétido, contornando a parede suja e depredada da DP.
Só mulheres. Bonitas, feias, jovens, velhas, alegres, tristes, barulhentas, taciturnas, bizarras e até felizes. Mães, esposas, namoradas, amantes ou solidárias prostitutas. Uma quarta-feira por mês, mas não nesta, é permitida a entrada de crianças. Nesse dia tudo é festa com direito a doces e balões de gás.
Nos olhares ansiosos dirigidos à porta de acesso à carceragem, as marcas de noites insones e lágrimas derramadas. O burburinho das conversas veladas sobre o andamento dos processos e outros assuntos de interesse comum mistura-se ao farfalhar dos plásticos e papéis manipulados nervosamente no afã dos últimos preparativos.
Sapatos e calças compridas não são permitidos, assim, aquelas que não conhecem a regra voltam dali mesmo e algumas retardatárias trocam de roupas na fila e até entram descalças. Existe apenas um banheiro, não há tempo a perder e o lugar deve ser garantido.
Excitadas com a eminência do contato íntimo, algumas falam sem parar, enquanto ajeitam os cabelos e retocam o baton. Algumas resmungam palavras de baixo calão devido à demora e às condições; outras, as mais idosas, arrastam-se lentamente, arcadas sob o peso das sacolas - o Jumbo. Quase todas se irmanam na dor comum.
Quando finalmente a porta se abre, uma brisa de ânimo nos impele para frente, num movimento uniforme. Na outra ponta, a fila já atinge a rua.
Uma ordem, o movimento cessa. A delegada de plantão, doutora Izilda ordena aos gritos, a limpeza do local antes de liberar a entrada. Só é permitida a entrada dos produtos em embalagem transparente, assim coisas compradas na última hora, são desembaladas apressadamente, deixando o chão repleto de papéis e plásticos em contato com a água que vaza do esgoto. Alguém pede uma vassoura. Com o comentário infeliz de que “quem tem um parente preso não pode fazer exigências”, ela nega.
O tempo escoa. Sem opção, recolhemos rapidamente o lixo com as mãos, entramos identificando-nos ao investigador de serviço e entregando a Ficha de Visita, um documento com nossos e uma foto 3x4, e em grupos de quatro, submetemo-nos à degradante, necessária e inútil revista das policiais femininas e posteriormente submetemos à vistoria dos investigadores na última barreira, as coisas que trouxemos e que a seu bel prazer permitem ou não que sejam entregues.
Detectores de metais são utilizados nos produtos. Garrafas pet abertas e cheiradas. Pacotes de doces ou potes de margarina, espetados com a mesma faca imunda com que retalham as pedras de sabão e os sabonetes. Talheres e copos, só de plástico. Barbeadores e seringas descartáveis passam.
Em direção à gaiola, num corredor em penumbra, duas ou três jaulas, não me lembro, grades nos quatro lados. Uma delas ocupada por um espectro grotesco de um jovem. Deve ter cometido estupro, ou estar marcado para morrer, motivos que justificam o isolamento. Esconde o rosto à nossa passagem. Uma visão bestial. À frente a claridade oriunda do pátio, precedido da gaiola, um cômodo cercado de grades que dá acesso à carceragem e de onde já se pode ver no exíguo espaço que deveria abrigar 30 ou 40 detentos, mais de 150 homens aglomerados.
Com a mesma ansiedade no olhar, delinqüentes de todos os níveis de criminalidade, jovens, velhos, bonitos, feios, de todas as raças, credo e cor, buscam entre as que chegam, um rosto familiar. Muitos nunca recebem visita. Limpos, barbeados e cheirando a sabonete barato, também eles estão travestidos para aquela pantomima.
Nos barracos - as celas de confinamento - mantas e cobertores limpos, estendem-se em varais improvisados. São biombos que dividem o pequeno espaço das celas – em número de 5 - em compartimentos minúsculos, onde com a privacidade possível, recebem suas visitas íntimas.Uma das celas não é utilizada para a visita íntima, para que o “boi”, vaso sanitário fique disponível.
No espaço comum, aqueles que recebem a visita das mães, conduzem-nas e acomodam-nas em meio à aglomeração. Ali, sentados no chão, um diante do outro, olhos nos olhos, interagem conforme o momento e a vigilância dos companheiros lhes permite, como se o tempo parasse e os delitos que levaram a essa situação nunca tivessem acontecido, o futuro não existisse e tudo não passasse de um pesadelo.
Enquanto isso, os que não recebem visita preparam o café e o servem com guloseimas que quase todos receberam nesse dia.
Ao toque cruel de uma sirene, finda-se a visita. O pano desce e sem aplausos seguimos para nosso dia-a-dia, cientes de que representamos bem nosso papel naquele ato, mas que a tragédia jamais terminará.
Nesse dia, foi a última vez que vi meu filho com vida. Apavorado, degradado, com os braços marcados pelo uso de drogas injetáveis, ainda me disse:
-Mãe, não tenha vergonha, você não tem culpa de nada do que eu fiz.
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