sexta-feira, 27 de julho de 2012

ANTES E DEPOIS

A exumação dos restos mortais do meu filho ontem, me levou a reler alguns escritos e, em especial este que ora compartilho. Não como vítima, mas como testemunha de que apesar de tudo a vida continua e vale a pena ser vivida. 

O corredor é estreito e mal iluminado. A atendente avisa: 

 - Tem muito sangue, tem certeza que quer olhar? 

 - Como saber se não olhar? 

Ela abre uma porta pintada de branco, muito suja. Apesar do frio daquela manhã de agosto, lá dentro é abafado. Mal consigo respirar. A mulher, uma negra simpática e afável, com uma expressão lancinante de piedade no olhar, estende o braço pela porta aberta, tateia e acende uma lâmpada. 

 - Não acha melhor esperar alguém para acompanhá-la? Não vai se sentir mal? 

 - Pior é impossível. Preciso ter a certeza já! 

Entramos. Ela na frente, eu atrás. O cômodo mal iluminado, sem janelas, pelo menos se as tinha, não vi, não permite ver além do foco da lâmpada. O foco da lâmpada que ilumina um balcão de concreto aparente, creio eu, sobre o qual repousa um enorme volume preto. Ela ainda me olha mais uma vez, com aquele olhar que dizia mais que mil palavras, dá um passo à frente, estende a mão sobre o volume e lentamente vai abrindo um zíper que parece não ter fim. 

As batidas do meu coração me sufocam e ensurdeço. Meu corpo todo pulsa comandado por uma esperança que minhas entranhas avisam ser vã. Ela dá um passo para trás para me ceder espaço. 

 - Pronto, pode olhar. 

Não me lembro do que vi, graças a Deus o cérebro dispõe de mecanismos de defesa, que nos imunizam contra a realidade permitindo a preservação da sanidade. Não lembro, mas sei o que vi e por não acreditar, ainda peço para ver mais uma vez. 

As pernas fraquejam. O cheiro de sangue quente me enjoa. Jamais vou esquecer aquele cheiro. Meu corpo estremece e a dor é tanta, que as carnes doem. Doem como se despregassem dos ossos e o sangue não conseguisse passar pelas veias e artérias. 

 - A senhora está passando mal? Quer alguma coisa, um café forte? 

 - Não, obrigada. 

Respiro fundo, quase sem forças para sugar o ar, levanto a cabeça e com passos firmes vou até o posto policial e faço o que tem que ser feito: informo à autoridade de plantão, que aquele corpo perfurado de balas, ali recolhido como um entulho é meu filho, gerado e criado com extremo amor e arrancado de mim pela maldição das drogas. Preencho o formulário sem sentir as mãos e saio sem rumo. 

Tudo não leva mais de 15 ou 20 minutos, mas são os minutos que dividem minha existência em ANTES e DEPOIS.


Paulo Daniel  *20/01/1978 
                      +15/08/1999

terça-feira, 24 de julho de 2012

De volta a Aparecida

Estive em Aparecida do Norte diversas vezes nesta longa estrada da minha vida. Vi as transformações da cidade e do Santuário, cuja obra gigantesca acho, nunca chegará ao término, pois as necessidades e os costumes se renovam e requerem sempre novos adendos.


A primeira vez que lá estive foi em 1964, quando fui com meu noivo, minha mãe e irmã. Uma moça de família não saía só com o namorado, mesmo que fosse para visitar a padroeira. Desse dia lembro-me da longa viagem de ônibus e de visitar a igreja velha.



Guardo a foto oficial da visita, feita pelos fotógrafos de plantão que não perdiam a oportunidade de faturar às custas dos visitantes.

Família dos meus sogros

Depois voltei à cidade algumas vezes para levar minha sogra, senhora de fé, membro do Apostolado da Oração e muito devota de Nossa Senhora Aparecida, de quem tinha uma bela imagem no oratório em casa e de Santo Antonio, padroeiro da cidade em que viveu a maior parte de sua vida – Americana – SP.

(Obs. As fotos que se seguem são atuais.)



Além da Sala dos Milagres, desorganizada e de aspecto surrealista nessa época, a passarela, recém-inaugurada era o objetivo da minha caminhada por lá, depois da visita à imagem da Senhora, é claro.


 

Em 2000 lá estive com filho, nora e netos e novamente tudo se me apresentou por um novo ângulo. Aparecida é assim, nunca é a mesma que vimos da última vez. 


E agora, nos dias 19, 20, 21 e 22 de julho, voltei à Terra da Mãe Aparecida para o 3º encontro Nacional da Pastoral da Comunicação. Encantei-me com a disposição e organização de todos os setores do Santuário. Uma infraestrutura impecável e perfeita para acolher com aconchego e dignidade a imensa massa de fiéis que para lá se dirigem diariamente.


Embora os trabalhos nos tomassem todo o tempo durante o dia, tentei apreciar ao máximo a magnífica arquitetura da basílica em cada um de seus detalhes e a cada novo ângulo me surpreendia. 


Espero voltar muitas vezes para reverenciar a Senhora da Conceição Aparecida, levar-lhe meus agradecimentos e súplicas, mas também para explorar com mais tempo recantos e detalhes da área do santuário e da cidade que escaparam desta vez.

sábado, 14 de julho de 2012

FUÇANDO O BAÚ - II

"Mas sempre foi assim e sempre será,  o novo vem e o velho tem que parar"
(Triste Berrante - Sérgio Reis)

Sigo pela calçada do lado ímpar da Tutóia.

Atravesso a Teixeira da Silva e de repente tenho a sensação de que não estou no lugar onde por 17 anos morei. Do quarteirão todo restam apenas o prédio de apartamentos na esquina com a Teixeira da Silva e a pizzaria Estrela do Paraíso, a melhor pizza que já comi, na esquina com a Maria Figueiredo, mas como soube hoje, também será demolida. O resto um grande vazio. Foi tudo abaixo para dar lugar a construção de mais um condomínio.

 Do lado da Tutóia, desapareceram a danceteria Shampoo, a floricultura da Beth, um prédio de apartamentos de 6 andares e uma casa comercial, acho que era uma escola de computação ultimamente e do lado da Maria Figueiredo, diversos imóveis particulares.

Foi como se o chão sumisse debaixo dos meus pés. Aos poucos tudo o que eu conhecia naquele pedaço, vai desaparecendo e dando lugar ao novo. Não existe mais a padaria, o bar do Geraldo onde se comia a melhor carne de sol com macaxeira da região, a casa da doutora Vera, minha dentista, bem como todas as outras casas daquele outro quarteirão.

Aos poucos a Rua Tutóia muda de cara e os antigos e conhecidos comerciantes se vão, ficando no lugar de seus estabelecimentos à moda antiga, grandes condomínios fechados de onde só se vêem carros entrando e saindo, como se só de veículos se constituísse a população desta cidade.

No ponto de ônibus, olhei para o edifício onde morei, quase em frente. Esse está lá, do mesmo jeito, do outro lado da rua. Essa visão associada ao grande vazio atrás de mim desestruturou-me. Não pude conter as lágrimas.

Virei-me para não ser observada pelas pessoas em volta e vejo bem perto de mim um senhor muito familiar que também olhava pensativo para aquele vazio. Penso um pouco e, eureka! Mais um encontro nesse dia tão cheio de novidades. É o senhor Luis, o farmacêutico, cuja farmácia também não existe mais.

Mas essa é apenas uma cena do próximo capítulo.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

EEPG César Martinez - Moema



Meus pais, em anos diferentes e sem se conhecerem, freqüentaram o Grupo Escolar César Martinez, em Indianópolis, que à época funcionava num prédio localizado na Alameda Iraé, atrás da Igreja N Sra Aparecida, no local onde hoje funciona o Centro Comunitário da Paróquia. 

Em 1953, na esquina da Alameda Iraé com Avenida Indianópolis, foi inaugurado o novo prédio da escola, construído no antigo campo de futebol do Clube União de Indianópolis, clube onde meus pais se conheceram. O Grupo Escolar César Martinez passou a ser então o local de votação aonde nos dias de eleição, acompanhava meus pais e aproveitava para correr naquele pátio imenso. 

Em 1984, de volta a São Paulo, depois de morar 15 anos em Mogi das Cruzes, inscrevi-me no concurso de remoção de professores. Na época, indiquei 25 escolas, abrangendo desde a Luz até Santo Amaro, mas nem sequer lembrei do César Martinez. Fui removida para a EEPG Prudente de Morais, na estação Tiradentes do Metro, ao lado da FATEC. 

Comissionada numa instituição filantrópica, a Casa D Macário, na Vila Maria, no ano seguinte inscrevi-me de novo na remoção e indiquei três escolas: a EEPG Rodrigues Alves, na Av Paulista, a EEPG Mario de Andrade, no Brooklin, onde cursara o primário e a EEPG César Martinez, que redescobrira por acaso num passeio em Moema. Fui premiada e removida para o César Martinez, lecionei ali de 1987 a 1995 como efetiva e aposentada, continuei como substituta com classe até 1998. 

Foram anos de trabalho prazeroso, numa escola tradicional e conceituada, com excelente corpo docente, onde conquistei amigas que preservo ainda e que fazem parte desse pedaço da minha vida, ligado a uma escola, que mesmo antes de eu nascer já fazia parte da minha história.

Na foto, da esquerda para a direita e de cima para baixo: Regina, Vera, Cleide, Silvia, Jacira, Claudia, Iveta, Ana Emília, Ernestina, Olga, Helena, Rosa, Maria José (diretora interina)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

A morte de D. Eugenio levou-me a lembrar de D. Paulo

De 1971 a 1985, moramos em Mogi das Cruzes.

De tempos em tempos, vínhamos a São Paulo, para passar o fim de semana com meus pais. Nessas ocasiões meus filhos se esbaldavam no quintal e não davam folga ao avô, que lhes dava uma canseira no futebol. Era uma festa! Festa que na tarde do sábado, 2 de agosto de 1975, foi interrompida por minha avó:

- “Estava ouvindo o rádio e acho que aconteceu alguma coisa com um padre conhecido de vocês”.

Ligamos o rádio e logo ouvimos a notícia da morte de D. Paulo Rolim Loureiro e de seu  motorista, num acidente de automóvel, no Largo Ana Rosa,  no cruzamento das Avenidas Rodrigues Alves com Domingos de Morais. Foi uma correria, meu marido, diácono permanente da Igreja, ordenado em Mogi por D Paulo, era a pessoa mais próxima do bispo que se encontrava aqui em São Paulo. Assim, seguiu imediatamente para o IML, onde acompanhou a necropsia e os procedimentos para liberação dos corpos e seguiu com eles para Mogi.

No domingo veio buscar-nos e naquela semana, após uma comovente celebração de corpo presente, com os esquifes do bispo e de seu motorista lado a lado na nave central da catedral de Mogi, lotada até do lado de fora, sepultamos nosso querido pastor, no interior da igreja, do lado esquerdo da porta principal.

Dom Paulo Rolim Loureiro foi o primeiro bispo da Diocese de Mogi das Cruzes. Eu o conheci em 1972, no Clube de Campo, no coquetel comemorativo dos 10 anos da criação da Diocese de Mogi das Cruzes. Atuava antes, como bispo auxiliar da Arquidiocese de São Paulo, onde, entre outras atividades, em 12/10/1955 assinou o decreto de criação da Diocese de Santo Amaro e em 1957, abençoou a pedra fundamental da igreja de Nossa Senhora da Penha.

Aristocrático, formal, da ala conservadora da Igreja, era, no dia a dia, simpático, interessante, afável e bem humorado. Mas formal. Freqüentava nossa casa e dessas visitas, ficou marcado um almoço de domingo. Após uma breve oração, iniciamos o almoço, logo interrompido por minha filha Cristina,   muito pequena, dizendo que queria fazer “Tchi... Tchi...”.

Entendemos “xixi” e meu marido toma-a pela mão para levá-la ao banheiro. Ela empaca contrariada e grita: “No copo, pai!”. Então entendemos: ela queria brindar, como fazíamos sempre, nas reuniões familiares. Dom Paulo deu uma bela risada, sentamo-nos e brindamos o ilustre visitante, que daquele dia em diante, toda vez que nos encontrava, perguntava pela menininha que queria fazer xixi no copo.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

FUÇANDO NO BAÚ - I

"Nada como um dia depois do outro..."

Quarta-feira, 12 de abril de 2006. Lá pelas 13h30min, saio com algumas tarefas para cumprir. Coisa de umas duas horas e estaria de volta. Demorei mais de 8 horas e só resolvi dois assuntos, mas em compensação tenho uma novela para contar. Claro que será em capítulos. 

Embarco em um ônibus na Vicente Rao e desço na Brigadeiro Luiz Antonio, para dali seguir a pé até ao Banespa da Tutóia. Entre o ponto e o banco, 5 quarteirões, acontecem dois encontros inesperados. 

O primeiro no portão da casa de dona Maria Angélica, mais de 80 anos. Ela espera o rapaz que vem auferir o consumo da água, para “conferir” seu trabalho. Paro. Somos conhecidas há muitos anos.  Cumprimentos calorosos, relatórios sobre como estão os velhos  moradores da Rua Álvaro de Menezes - dona Dilma morreu, faz uns seis meses – e sobre o mais importante: o bingo da igreja do SSMO. Sacramento. Ah! Dona Maria Angélica é viciada nesses bingos da igreja, não perdia um até que machucou o joelho e precisou fazer repouso. “Mas logo fico boa e volto a participar”, comenta animada enquanto sigo meu caminho. 

Atravesso a rua e encontro a Dora e a filha. Essa Dora, a melhor amiga da “outra”, sempre que me encontrava, media-me dos pés à cabeça e com o nariz torcido suspirava: “Você está tão magra! O que aconteceu?”. Justo eu que não mudo de peso há pelo menos 25 anos! Naquela época, meados da década de 90 ela já estava com seus 60 anos. Estudava psicologia e tinha essa filha com 15 ou 16 anos. Diziam as más línguas, que ela estudava para conseguir um marido, visto que era viúva. Encontrava-me com ela quase todas as tardes quando retornava do trabalho e passava no supermercado Yayá para pegar o pão. 

 Nesse dia estranhei. Ela me olhava como se não estivesse me vendo, através de mim. Cumprimentei e beijei as duas e logo percebi que ela não estava nada bem. Aí, a filha, que sempre foi muito direta, soltou a pérola: "Mãe, não tá lembrando dela? É a Lidia, a ex-mulher do xyz, “aquele”, da Geny. Lembra?”. “Ah... é mesmo...”, balbuciou inexpressivamente. 

Eu não sabia se ria do “feeling” da menina, que sempre foi meio brucutu, ou se chorava por causa do estado lastimável daquela que vivia me encolhendo. Despedi-me com os beijinhos de praxe e segui lembrando da avó de uma amiga que dizia: “Nada como um dia depois do outro”.

Foto: Rua Tutóia, lado ímpar, esquina com Manoel da Nóbrega - 1986