A exumação dos restos mortais do meu filho ontem, me levou a reler alguns escritos e, em especial este que ora compartilho. Não como vítima, mas como testemunha de que apesar de tudo a vida continua e vale a pena ser vivida.
O corredor é estreito e mal iluminado. A atendente avisa:
- Tem muito sangue, tem certeza que quer olhar?
- Como saber se não olhar?
Ela abre uma porta pintada de branco, muito suja.
Apesar do frio daquela manhã de agosto, lá dentro é abafado. Mal consigo respirar.
A mulher, uma negra simpática e afável, com uma expressão lancinante de piedade no olhar, estende o braço pela porta aberta, tateia e acende uma lâmpada.
- Não acha melhor esperar alguém para acompanhá-la? Não vai se sentir mal?
- Pior é impossível. Preciso ter a certeza já!
Entramos. Ela na frente, eu atrás.
O cômodo mal iluminado, sem janelas, pelo menos se as tinha, não vi, não permite ver além do foco da lâmpada. O foco da lâmpada que ilumina um balcão de concreto aparente, creio eu, sobre o qual repousa um enorme volume preto.
Ela ainda me olha mais uma vez, com aquele olhar que dizia mais que mil palavras, dá um passo à frente, estende a mão sobre o volume e lentamente vai abrindo um zíper que parece não ter fim.
As batidas do meu coração me sufocam e ensurdeço. Meu corpo todo pulsa comandado por uma esperança que minhas entranhas avisam ser vã.
Ela dá um passo para trás para me ceder espaço.
- Pronto, pode olhar.
Não me lembro do que vi, graças a Deus o cérebro dispõe de mecanismos de defesa, que nos imunizam contra a realidade permitindo a preservação da sanidade.
Não lembro, mas sei o que vi e por não acreditar, ainda peço para ver mais uma vez.
As pernas fraquejam. O cheiro de sangue quente me enjoa. Jamais vou esquecer aquele cheiro. Meu corpo estremece e a dor é tanta, que as carnes doem. Doem como se despregassem dos ossos e o sangue não conseguisse passar pelas veias e artérias.
- A senhora está passando mal? Quer alguma coisa, um café forte?
- Não, obrigada.
Respiro fundo, quase sem forças para sugar o ar, levanto a cabeça e com passos firmes vou até o posto policial e faço o que tem que ser feito: informo à autoridade de plantão, que aquele corpo perfurado de balas, ali recolhido como um entulho é meu filho, gerado e criado com extremo amor e arrancado de mim pela maldição das drogas.
Preencho o formulário sem sentir as mãos e saio sem rumo.
Tudo não leva mais de 15 ou 20 minutos, mas são os minutos que dividem minha existência em ANTES e DEPOIS.
Paulo Daniel *20/01/1978
+15/08/1999
Lidia,as lagrimas escorrem por minha face e o coração está apertado. Voce é uma mulher exemplar por ter suportado essa dor e sobrevivido a toda essa tragédia.
ResponderExcluirBj no coração
esther
sem palavras!!!!! porque as suas me calaram...
ResponderExcluirBjo de quem lhe admira muito.
Querida, a dor de enterrar um filho é terrível, não importa qual o motivo que os levou. Grande parte de nós vai com eles...
ResponderExcluirNão suportaríamos, se não fosse a força que Deus nos dá para continuarmos seguindo nossas vidas.
Você é uma mãe Abençoada, por ter essa força de Deus. Abraço forte.
Lidia agora sei de onde vem toda a sua força. Desse coração abençoado por Deus que carrega no peito. Quanto amor amiga. Quanto amor..
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ResponderExcluirO que dizer diante de seu relato...
ResponderExcluirVocê é uma guerreira. Por tudo que passou, ainda encontra forças para reconfortar quem de ti precisa
Como é bom conhecer você
Certamente seu Paulinho está junto a Deus
Pedro Nastri
"Caminante no hay camino, se hace camino al andar...", você fez seu novo caminho, e com sabedoria... Beijos
ResponderExcluirMartha
Amigos, agradeço os comentários e especialmente o carinho, que conhecendo vocês como conheço, sei que é sincero e reconfortante.
ResponderExcluirGosto de escrever e escrever me faz bem. Conto para o papel (agora computador) aquilo que me entristece, pois o que me alegra conto para as pessoas. Depois, quando as emoções estão processadas, publico minhas vivências, não com o intuito de granjear simpatia ou piedade, mas realmente para deixar registrado como experiência de vida, que, quem sabe, poderá servir a alguém.
Abraços a todos.
Lidia querida
ResponderExcluirque maravilha você ter o dom de escrever, pois nos escritos de uma ou de outra maneira colocamos para fora o que nos aperta no peito,o que nos alegra, o que nos -atormenta.
Êsse seu texto é e s p e c i a l e foi escrito através de suas entranhas, entranhas de mãe.Gostaria de estar nesse momento após a leitura do texto perto de você para poder abraçá-la fortemente.
marcia ovando
Lídia,
ResponderExcluirSeu texto foi para mim um bálsamo. O simples fato de conhece-la e poder compartilhar de algumas horas de minha vida com você, que superou tão imensa e longa dor, me diz que eu preciso repensar a minha vida.
Estou lutando contra uma depressão, que vem não sei de onde. Meus sofrimentos são tão pequeninos perto do seu, que não sei o que lhe dizer. Só sei que vou refletir muito sobre o que eu li. Com a certeza que serei ajudada pela sua força. Seu filho, com certeza está recuperado, sua força e sua fé iluminaram o seu caminho. Estou chorando, mas sei que ainda vou abraça-la e dizer muito obrigado. zuleide
Lidia querida...o AMOR EXIGENTE te ama demais e estará semrpe de braços abertos pra conversar com vc....Beijos Ronaldo
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