quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Morcegos: ontem e hoje


Com as últimas chuvas a minha Mata Atlântica cresce, cresce descontroladamente. Esta semana dedicamos duas manhãs para podar as plantas e tentar abrir caminhos para o sol. Ainda na lida, a campainha toca e um agente sanitário da prefeitura nos alerta sobre o fato de ter sido encontrado um morcego com raiva aqui, no bairro. Deixou um folheto explicativo sobre morcegos, precauções, cuidados e procedimentos ao encontrá-los. 

Enquanto tomava o merecido banho após a lida, lembrei-me dos primeiros dias do meu retorno à casa paterna, em 2004 e de um texto que publiquei naquela época. 

“Meia noite. Pausa para os comerciais. Cenas finais do filme “O preço de um resgate”, com Mel Gibson, surpreendentes para quem visse pela primeira vez. Um OVNI cruza o ar pelo corredor na penumbra, passando pela porta do quarto. 

- Será um pássaro? Um avião? Ou o Superman? 

Acho que vi um passarinho, mas se eu disser isso à luz do dia, dirão que enlouqueci. Poderia ser uma mariposa – com dois palmos de envergadura?! 

No café da manhã comento com meu pai, que me olha condescendente, sorri meio de lado e não diz nada. Por certo tem medo de magoar a filha que a essa altura já julga senil. 

Uma semana depois, três horas da madrugada. Os mosquitos com sua serenata não me deixam dormir. Acho que a Prefeitura não está cuidando bem da minha Vila Carmen. Acendo as luzes e saio à caça das infernais criaturinhas. No corredor, com a luz ainda apagada, avisto um vulto pendente do forro de madeira. 

- O que será? 

Na véspera fiz faxina e aquilo não estava lá. Sem muito entusiasmo acendo a lâmpada e aí tudo se explica: alçando um belo e artístico vôo, um genuíno descendente do Conde Drácula passa por mim, dá uma voltinha bem direcionada e sai pela janela do banheiro, que jamais, em hipótese alguma, será aberta.

Suspiro aliviada, o OVNI estava identificado. Cruzes! Estacas! Muito alho!” 


Depois disso, aprendi a conviver com os morcegos que aparecem após o escurecer, alimentam~se com as frutas do quintal e nos assustam com seus voos rasantes, de uma precisão admirável, visto sua navegação ser totalmente orientada por radares. 

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Toque de Alvorada

Em 1985 mudamos para a Rua Tutóia. Tudo foi muito rápido, achar o apartamento – “Galinha Morta”, conforme o anúncio do Estadão – pintá-lo e mudar, acho que não levou 15 dias. As aulas iam começar e tínhamos que estar por aqui. Assim, não exploramos a vizinhança antes.

Na primeira manhã após a mudança, era domingo, dormíamos um pouco mais, no colchão no chão ainda e somos acordados com um toque de alvorada, às 6h. Parecia que alguém tocava o clarim em nossa cozinha. 

Só então me dei conta de que, olhando pela janela da área de serviço, via-se mais adiante, na Tutóia, um quartel e que aquele quartel era o que abrigou o DOI-CODI, onde tantas atrocidades foram cometidas durante o regime militar. 

Acostumamos com o toque da alvorada todos os dias às 6h e com o toque de recolher às 18h, mas a partir de um dado momento passei a sentir um mal estar todas as vezes que passava ao lado do longo muro que se estendia até a Rua Abilio Soares. Era algo que me oprimia o peito, não sei explicar. 

Foi assim até o dia em que, do nada, decidi mandar celebrar missas, muitas missas na intenção de todos os que morreram torturados ali e, sem que eu consiga lembrar quando, todo o mal que eu sentia desapareceu. 

O quartel nunca mais me assustou, mas anos depois, quando foi demolido e em seu lugar ficou um enorme vazio, a paisagem parece que se desanuviou. 


Foto tirada da janela do nosso apartamento, no 6º andar. No canto à esquerda aparece o prédio da IBM. 
No centro a torre da Telefônica na rua do Livramento – Paraíso. 
Ao fundo, o verde do Parque do Ibirapuera. 
Entre os sobrados e os prédios ao fundo, a lacuna deixada pela demolição das instalações do quartel onde funcionou o DOI-CODI da Tutóia.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Memória, História, Saudade

No mês de janeiro comemoramos os aniversários de São Paulo e Santo Amaro - a cidade e o bairro (que já foi município até 1935) e, acho que por causa disso, fui rever meus escritos e achei um texto que escrevi para um concurso da Prefeitura de São Paulo e que foi incluído em livro. Não é nada demais, mas gosto dele, pois deu-me a oportunidade de compartilhar memórias e material, guardado com carinho pelo meu pai.

Ora publico o trecho inicial do relato, escrito em 2006.


Minha história se confunde com a história da Vila Carmen, pois esta não possui uma história oficial, formal, existe apenas o conjunto das histórias vividas por seus habitantes e que são a verdadeira história, a história de cada um entrelaçando-se com as dos demais, construindo uma biografia viva e pulsante, que só será conhecida através dos registros daqueles que a viveram e que entenderam a importância desse legado para as futuras gerações, como foi o legado dos antepassados para nós.

Em 1947 meu pai e meu avô compraram dois lotes vizinhos, no loteamento constituído em 1937, com títulos de domínio depositados na 1ª circunscrição, sob inscrição nº. 2, em 12/05/1938 (Decreto Lei nº. 58 de 10/12/1937).


Esses dados encontram-se no Folheto Promocional do empreendimento, cujo escritório de administração se localizava na Rua José Bonifácio, 233 – 6º andar. Telefones: 2-5321 e 2 – 7041 – São Paulo.

Esse folheto, que ainda guardamos como um tesouro é ilustrado com as residências já construídas então, e contém um texto promocional  interessante:

“Vila Carmen - Bairro exclusivamente residencial. Arruamento moderno, lotes amplos para prédios isolados. Clima saudável, belos panoramas, “socêgo” e fácil condução para o centro. Siga o exemplo de tantos outros. Faça sua casa neste “logar” saudável e “socegado”, em terreno amplo que custará apenas uma fração do preço de um lote na cidade.

Melhoramentos: Ruas traçadas de acordo com a “bôa” técnica, acompanhando curvas de nível, leitos abaulados, “sargetas” e meio fio instalados.

Em destaque: Rua do Ouro – Um recanto encantador, com sua Vila dos Pássaros, magnífica mansão que valoriza o bairro.


Condução: A Vila Carmen é atingida “atravez” das avenidas 9 de julho e Adolfo Pinheiro (Estrada de Santo Amaro). O Tramway faz retorno de carros na Parada Brooklin, dentro do loteamento, facilitando o uso desse transporte. Ônibus na Estrada de Santo Amaro. Distância da Praça da Sé: 11km.”


Em 1949, quando nos mudamos, não havia luz, água encanada nem benfeitorias nas ruas desta área mais nova do loteamento da Vila Carmen. Nossa casa, construída por meu avô e meu pai, ainda não estava terminada. A água era tirada do poço, com balde, corda e sarrilho. Para iluminar havia lampiões a querosene que faziam uma fumaceira e não clareava direito. O ferro de passar roupa e o fogão funcionavam com carvão. 


Poder brincar num quintal com terra, entrar no córrego, fazer panelinhas de barro colorido, retirado dos barrancos, me proporcionava uma vida tão nova e diferente, que não me permitia sentir as agruras daquele momento difícil que minha família passava, para realizar o sonho da casa própria. Eu era uma criança feliz.