sábado, 18 de janeiro de 2014

A um passo do paraíso...




Em julho de 2005 estive a um passo do paraíso sob o patrocínio da Cristina, minha amada filha que, por ocasião de tornar-me sex... ( sexagenária), presenteou-me com a realização de  um sonho acalentado há anos.

Lá, carregando pedras enquanto descansava; subindo e descendo mais escadarias do que subo e desço aqui, carregando muito peso sobre os ombros e arrastando meus pés descalços por caminhos nunca dantes transitados, pensava de vez em quando nas obrigações deixadas para trás, mas ia logo afastando essas lembranças, pois como aprendi no catecismo, é pecado alimentar maus pensamentos.

Certa tarde, eu que bravamente atravesso a Praça da Sé, que passeio pelo bairro da Luz, exploro os arredores da 25 de março; que já visitei os becos sórdidos dos treme-tremes do Bexiga, trabalhei ao lado da favela Funerária entre a Vila Maria e o Parque Novo Mundo; sem contar a passagem diária pela tenebrosa esquina perto de casa, que não é esquina, mas curva de rio, onde para tudo o que não presta, fui covardemente assaltada por um Bob Marley nada artista e muito fedorento que ali, a um passo do paraíso, em parceria com um elemento esquisito, agarrou quem me acompanhava arrancando-lhe a carteira de documentos e cortando, com uma faca fina e pontiaguda, a alça da bolsa a tiracolo.

Como diz o ditado: “o saber não ocupa lugar”, e sendo esta cidade, mestra em nos preparar para esse tipo de situação, fui logo dizendo ao Bob Marley de araque: "calma, por favor, não leve as roupas, deixe nossos documentos, eu lhe mostro onde está o dinheiro, tem só uma nota de 50”.

Enfiando a bolsa na minha cara, com a faca perto do meu nariz, ele esperou que eu abrisse o zíper e apontasse a pequena bolsa de crochê, que revirou, pegando a nota e dizendo para o outro que portava uma faca curta porém robusta: “pode deixar, não tem mais nada não!”.

Assim, a um passo do paraíso, aonde minutos antes contemplávamos extasiados as belezas naturais e agora via aquela lâmina reluzindo ao sol, só conseguia pensar numa coisa: “não permita Deus que eu morra sem que volte para lá!” (Gonçalves Dias).

Atônitos, caminhamos lentamente em direção ao hotel, vendo nossos agressores afastarem-se tranquilamente, com aquela terrível sensação de impotência, mas agradecendo a Deus por ter sido apenas um susto. 

E foi ali, a um passo do paraíso e não aqui na cidade violenta, que o inesperado lá, mas esperado aqui, aconteceu.


De lá, guardo o sonho realizado de conhecer os indescritíveis Lençóis Maranhenses, lembranças, imagens extasiantes e um "recuerdo" feito por mim, com a casquinha do siri, degustado naquele dia, numa praia urbana em São Luiz do Maranhão.




sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Por falar em levar vantagem, me lembrei...

Fevereiro de 1974. Três filhos pequenos, uma casa num conjunto residencial do BNH no  bairro da Vila Lavínia, Mogi das Cruzes, sem o carro, vendido para pagar dívidas.


A filha mais velha, 7 anos e 4 meses, convalescia de uma pneumonia em casa e o caçula, 1 ano e 5 meses, após diversas complicações de saúde, decorrentes de uma mononucleose, adquirida  por volta dos  40 dias de vida, jazia num leito hospitalar sem perspectivas de melhora.  Minha vida era um ir e vir insano.

Por esses dias, despencou um temporal arrasador e ao anoitecer, consegui emprestado o carro de uma amiga para ir até em casa, dar uma geral e voltar ao hospital.

O caminho estava um caos, sem iluminação, a avenida de acesso ao bairro com mais de um palmo de lama que desceu das partes altas. De repente, na minha frente um veículo vindo do sentido oposto, atropela um vulto que saindo de uma travessa adentra a rua sem parar. Tudo muito rápido e confuso. O motorista freou, mas o carro deslizou no barro e passou por cima do cidadão, cujo corpo agora jazia ao lado meu carro, semi coberto de lama e sangue. Por questão de segundos teria sido eu a atropelar aquele homem. Alguns carros pararam para ajudar. Segui meu caminho com as pernas bambas.

Bem mais tarde, de volta ao hospital, notei a movimentação de policiais e soube que a vítima do atropelamento estava internada ali. Soube também pelos enfermeiros que era um senhor dos seus 50 e poucos anos, alcoolizado, que já estava cuidado e internado e que o motorista permanecia ali, aflito e solícito.

Na manhã seguinte, um sábado, fui liberada do hospital para ir pra casa cuidar das outras crianças. Meu marido ficaria ali. Para sair, devia passar em frente ao quarto do atropelado. Parei na porta pensando em entrar e ter notícias de seu estado, mas devido ao alvoroço, fiquei onde estava tentando entender aquela gritaria.

No leito, ele gemia alto, enfaixado dos pés à cabeça, semi sentado, com os braços e uma das pernas pendendo de cordões presos a uma armação de metal, parecia uma múmia-marionete. De um lado da cama, aquela que logo entendi ser a esposa, esbravejava e gritava para não deixar dúvidas, com o rapaz, que logo reconheci ser o motorista, que estava do outro lado da cama, exigindo indenização pela perda do marido, o mantenedor da família. Ele deveria pagar uma boa soma, pois ela estava desamparada e a culpa era dele.

O rapaz, que me pareceu do bem e não teve culpa no que aconteceu, eu vi, ouvia, tentava acalmar a mulher, dizendo que não fugiria às suas responsabilidades. Mas ela queria saber quanto? Quanto dinheiro ele lhe daria, era pobre, agora  teria  despesas com enterro, etc.

Fiz um sinal ao rapaz, me identifiquei e perguntei se tinha alguma testemunha. Sim, outros viram o que eu vi. Ele me agradeceu e fui para casa pensando naquela situação inusitada, daquela mulher dando o marido como morto e só pensando em levar vantagem.


Tempos depois, voltando ao hospital para uma consulta, soube que aquele senhor se recuperara completamente, já estava de volta ao trabalho. Enfim, tudo acabou bem.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Tios e primos

Hoje minha tia Léia completa 95 anos. Irmã mais velha do meu pai resiste bravamente ao tempo e às intempéries da vida. 

Fomos vizinhos durante muito tempo. Ela uma energia impressionante. Magra, elétrica. Sempre se movimentando de um lado para o outro.  Casada com o tio Antonio, um tipo tranquilo e bonachão, que com aquele riso meio rouco que sacudia a pança era diversão só. Os filhos Moacir, Márcia, Miriam e Maurício, os M M M M, ótimas companhias e só alegria. 

O Moacir muito pândego me irritava com piadas inocentes, mas nojentas.  Lia muito, colecionava livros e gibis que foram as minhas primeiras leituras na infância. Dois anos mais novo que eu, foi meu “alvará de soltura” junto aos meus pais, para frequentar cinemas, além das matinês e assistir sucessos como Bem Hur, Álamo, etc...

A amizade continua e quando nos encontramos rimos muito lembrando a infância.

Dizem por aqui que a tia Léia sou eu amanhã. Tomara!

Também vizinhos, os tios Luiz e Dirce, ele, irmão mais novo do meu pai, com a grande família: Cilmara, Luiz Antonio, Vera, Nazaré e Edilson – o Léo.

Lembro quando conheci a tia Dirce, acho que foi quando eles ficaram ou iam ficar noivos.  Baixinha, delicada e voz fininha e macia, diferente da minha mãe e das minhas avós que falavam “duro”. Confesso que naquele momento tive ciúme do meu tio Luiz, que me paparicava muito.

Lembro-me do nascimento da filha mais velha, do seu batizado, com direito a festa e discos na vitrola. Mas o que mais curti foi o Luizinho, 10 anos mais novo que eu. Quando minha tia Dirce me deixava ficar um pouco com ele, era o meu bebê na brincadeira de casinha. Hoje, junto com os outros que aqui permanecem, são nossos anjos da guarda. Sempre atentos e solícitos, nos ajudando demais.

Do outro lado da família era o tio João, tia Adelaide e tia Lúcia, irmãos da minha mãe e respectivos cônjuges.

O tio João e a minha mãe eram muito ligados, assim sempre o visitávamos na casa da Vila Indiana na Vila Helena. Os primos Benedito, Maria Conceição e Ademir eram muito divertidos e como moravam numa vila bem sossegada, quando íamos lá, podíamos brincar na rua, pular corda, andar de patinete e carrinho de pedalar – sempre achei os brinquedos dos meninos bem mais interessantes do que as bonecas. A tia Mariazinha, de pouca fala, era só carinho, cafezinho e bolo. 

A tia Adelaide, o esposo Ari e os filhos Roberto e Gilberto moravam na Cidade Adhemar. Foram uns dos primeiros moradores do bairro. A casa ficava em um terreno em declive que dava num córrego bem limpo. Do outro lado havia uma elevação, tipo colina, com mata Atlântica natural, onde se viam Manacás lindos com suas flores roxas e brancas. Lá brincávamos de pega-pega e esconde-esconde, pois o terreno e a casa ainda inacabada favoreciam esses folguedos.

Dali me vem dois fatos marcantes: a caçada às içás que depois viraram petisco que não experimentei e a ida a pé pela mata, até o bairro de Santa Catarina onde ocorreu a queda de um avião. Jamais esquecerei aquele cenário cinzento, repleto de destroços...

A tia Adelaide faleceu precocemente, por ocasião da troca de seu marca passo cardíaco. Com esses primos, perdi o contato.



A tia Lúcia, o tio Salvador e os filhos Ricardo e Lucia Helena moravam na Cidade Vargas. Fomos almoçar em sua casa algumas vezes e lembro até do gosto da carne assada recheada que ela fazia. 

Sempre foi muito carinhosa conosco, me tratando até hoje de filhinha, nas poucas vezes que a visito na mesma casa, onde mora com a filha Lúcia Helena, que cuida dela.

De cera, só o nome




Flor de cera, real, aveludada, perfumada.

Desde que me entendo por gente, vejo essa planta no meu quintal, bem cuidada e querida, pela minha avó Deolinda, minha mãe e agora por mim. Os ramos se renovam, mas a planta é a mesma, que se estende pelos arames de suporte e quando encontra o chão cria raízes. Só me lembro de tê-la vista no meu quintal e agora, na internet.

Longos cipós com cachos a cada dois palmos. Encanto para os olhos e deleite das abelhas, de todos os tipos.

sábado, 11 de janeiro de 2014

Flagrante da vida real

Tinha dezesseis anos, morava num subúrbio de São Paulo e trabalhava como office boy no centro da cidade.

Estudava à noite, chegava tarde, saía de casa bem cedo, carregando a marmita. O salário era pouco, a vida difícil e ainda não tinham inventado o vale-refeição. Vivia atrasado, correndo pelas ruas para não perder a condução.

Certo dia, ao se aproximar da estação do trem, ouviu o apito, aviso sinistro de que a composição já estava para sair. Disparou desabaladamente em direção à plataforma e, ao colocar os pés ali, pisou em cheio numa poça d’água, escorregou e estatelou-se no chão.

A marmita voou, desembrulhou-se e a tampa separou-se dela, fazendo com que o ovo frito, única mistura que levava, saísse rolando pela plataforma, parando junto a um grupo de pessoas que esperavam a composição e que ao ver aquele ovo rolando, gritavam:

-  Pega o zoião  moleque! Não deixa a mistura fugir!
               

Envergonhado, sem olhar para trás, enfiou-se no vagão maldizendo o ovo artista, que fugiu rodopiando de sua marmita e evitando encarar os olhares com a sensação de que na face de cada pessoa, dois enormes ovos fritos marotos o fitavam.

Interação...

Final de tarde, sombras das árvores produzidas pela iluminação da rua já marcam nossas janelas.

- Toc... Toc... Toc... 
- Toc... Toc... Toc... 
- Toc... Toc... Toc... 

Quem estará batendo a essa hora, ainda mais que já trancamos o portão de acesso à casa?

Abrimos a janelinha da porta. Nada. Abrimos a porta, o sabiá que comia a ração do gato voa. Parece o mesmo sabiá arrepiado que já flagrei pela manhã dividindo a comida com o gato. Explicado o "Toc... Toc... Toc..." 




Bem mais tarde, saio para contemplar a infinidade de damas da noite que perfumam e enfeitam o quintal, abertas em sua plenitude após o breve chuvisco.




Na mesma vasilha de ração do gato, um sapinho empoleirado farta-se com as formigas invasoras, enquanto o gato, diverte-se olhando hipnotizado os girinos movimentando-se na poça de água.




Gato, pássaros, tartarugas, sapos convivem pacificamente por aqui como deveria ser com os seres da nossa espécie, ditos humanos e racionais. 

Que pieguice! Mas é o que sinto...