Fevereiro de 1974. Três filhos pequenos, uma casa num
conjunto residencial do BNH no bairro da Vila Lavínia, Mogi das Cruzes, sem o
carro, vendido para pagar dívidas.
A filha mais velha, 7 anos e 4 meses, convalescia de uma
pneumonia em casa e o caçula, 1 ano e 5 meses, após diversas complicações de
saúde, decorrentes de uma mononucleose, adquirida por volta dos 40 dias de vida, jazia num leito hospitalar
sem perspectivas de melhora. Minha vida
era um ir e vir insano.
Por esses dias, despencou um temporal arrasador e ao
anoitecer, consegui emprestado o carro de uma amiga para ir até em casa, dar
uma geral e voltar ao hospital.
O caminho estava um caos, sem iluminação, a avenida de acesso
ao bairro com mais de um palmo de lama que desceu das partes altas. De repente,
na minha frente um veículo vindo do sentido oposto, atropela um vulto que
saindo de uma travessa adentra a rua sem parar. Tudo muito rápido e confuso. O
motorista freou, mas o carro deslizou no barro e passou por cima do cidadão,
cujo corpo agora jazia ao lado meu carro, semi coberto de lama e sangue. Por
questão de segundos teria sido eu a atropelar aquele homem. Alguns carros
pararam para ajudar. Segui meu caminho com as pernas bambas.
Bem mais tarde, de volta ao hospital, notei a movimentação
de policiais e soube que a vítima do atropelamento estava internada ali. Soube
também pelos enfermeiros que era um senhor dos seus 50 e poucos anos,
alcoolizado, que já estava cuidado e internado e que o motorista permanecia
ali, aflito e solícito.
Na manhã seguinte, um sábado, fui liberada do hospital para
ir pra casa cuidar das outras crianças. Meu marido ficaria ali. Para sair,
devia passar em frente ao quarto do atropelado. Parei na porta pensando em
entrar e ter notícias de seu estado, mas devido ao alvoroço, fiquei onde estava
tentando entender aquela gritaria.
No leito, ele gemia alto, enfaixado dos pés à cabeça, semi
sentado, com os braços e uma das pernas pendendo de cordões presos a uma
armação de metal, parecia uma múmia-marionete. De um lado da cama, aquela que
logo entendi ser a esposa, esbravejava e gritava para não deixar dúvidas, com o
rapaz, que logo reconheci ser o motorista, que estava do outro lado da cama,
exigindo indenização pela perda do marido, o mantenedor da família. Ele deveria
pagar uma boa soma, pois ela estava desamparada e a culpa era dele.
O rapaz, que me pareceu do bem e não teve culpa no que
aconteceu, eu vi, ouvia, tentava acalmar a mulher, dizendo que não fugiria às
suas responsabilidades. Mas ela queria saber quanto? Quanto dinheiro ele lhe
daria, era pobre, agora teria despesas com enterro, etc.
Fiz um sinal ao rapaz, me identifiquei e perguntei se tinha
alguma testemunha. Sim, outros viram o que eu vi. Ele me agradeceu e fui para
casa pensando naquela situação inusitada, daquela mulher dando o marido como
morto e só pensando em levar vantagem.
Tempos depois, voltando ao hospital para uma consulta, soube
que aquele senhor se recuperara completamente, já estava de volta ao trabalho.
Enfim, tudo acabou bem.
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