Nosso apartamento foi vendido. Ali vivemos 17 anos durante os quais, como todo mundo, tivemos momentos alegres e tristes, mas não como todo mundo, apenas como poucos ou raros, perdemos dois filhos.
Ali, moravam comigo as lembranças dos risos das pessoas queridas nos almoços de domingo. O suspense, a vibração, os pulos e gritos nos jogos das copas mundiais de futebol assistidas juntos com direito a pipoca e refrigerante. As comemorações dos aniversários, natais, nascimento de netos e seus primeiros passinhos e tantas outras coisas...
Ali comigo também moravam os fantasmas das preocupações e sofrimentos de anos de noites insones a espera de um milagre que não aconteceu.
O apartamento foi vendido e quisesse eu ou não, tinha que desocupá-lo no prazo de um mês. Desocupá-lo só, não. Desocupá-lo, comprar outro o mais rápido possível, pois o valor que me coube na venda era pequeno e necessário se fazia investi-lo logo antes que se esvaísse.
Portanto, um mês para comprar um imóvel com pouco dinheiro, arrumar as coisas para a mudança e providenciar a mesma, tudo sozinha.
No dia em que assinei a venda, saí da imobiliária, sem rumo. Chorava tanto que não conseguia ler as placas das ruas da região onde me encontrava, para saber que direção tomar e achar a rua certa para retornar ao trabalho.
Um mês. Durante o dia pesquisava na internet os possíveis imóveis que caberiam dentro do meu orçamento e mais, localizados na região da Paulista – um milagre! À noite, para me ocupar, não pensar e não levar nada antigo, ou pelo menos da forma antiga, comecei a reforma dos móveis. Um antigo bar de canto com dois espelhos, depois de desmontado e serrado tornou-se um espelho de parede e um móvel de canto para a TV. Isso feito se fazia necessário pintar, pois partes antes ocultas, ficaram agora à mostra.
E o mês se passando. E eu pensando em todas as possibilidades de para onde ir se não conseguisse comprar um imóvel. Alugar? De jeito nenhum! Quem aluga paga o que não adquire e continua sem nada. Ir para casa dos pais? Das irmãs? Dos filhos? Possibilidades reais, mas não ideais...
Certo dia ao contatar uma imobiliária sobre um imóvel numa simpática ruazinha, que eu já conhecia porque uma amiga morava lá, a corretora me disse que aquele imóvel já fora vendido, mas que tinha um outro que eu iria gostar. Ficava muito melhor localizado, próximo de tudo, inclusive com metrô na porta. Marcamos a visita para o dia seguinte.
Após a reforma e pintura dos móveis, comecei o encaixotamento, em caixas de papelão que eu conseguia num supermercado, uma beleza de supermercado, do qual eu iria sentir a falta. Encaixotava por assunto e etiquetava as caixas numerando-as e relatando o que continham, numa organização que não era própria do meu temperamento, mas sim do meu atual estado neurótico.
No dia marcado fomos ao apartamento. Um prédio antigo, grande, bem conservado. Um lindo jardim em toda frente e corredores e escadas cheirando à limpeza, perfumados. Subimos, era no primeiro andar. Naquele dia, fazia 3 anos que meu caçula falecera. Estava emocionalmente abalada, o que somado à tarde nublada e chuvosa mais a falta de iluminação, pois a luz estava desligada, fazia com que o ambiente me parecesse sombrio e triste, mas o apartamento era exatamente o que eu estava procurando e o preço por incrível que pareça do tamanho do meu orçamento. Estou sonhando, pensei.
Nunca até então tomara uma decisão importante na vida sozinha e muito menos fizera algum negócio, além de feira e supermercado.
Pedi a minha filha que fosse até lá comigo para dar uma opinião, ela sim, uma empresária, decidida e segura. "A senhora ainda não comprou? O que está esperando?" Disse ao abrir a porta. Vamos já até a imobiliária. E assim fizemos. Nossa proposta foi aceita e agora só faltavam alguns alvarás, pois o imóvel fazia parte de um inventário.
O mês passando, minhas coisas todas encaixotadas. Sabendo o tamanho do novo apartamento, separei o que não caberia e enviei a uma entidade assistencial. Comprei alguns objetos novos, contratei uma empresa de mudanças e os alvarás não saíam. Deveria me mudar até o dia 29 de setembro de 2002.
No dia 26, o dono do apartamento liga e diz que, se eu concordasse, ele como procurador dos herdeiros, me daria uma autorização para ocupar o imóvel em caráter provisório e faríamos um contrato particular de compra e venda. Claro que concordei. Aquele senhor, que eu ainda não conhecia, me inspirava confiança. Entreguei nas mãos de Deus e no dia 27 lá estávamos na imobiliária assinando os papéis.
Quando aquele simpático dentista e seu filho me entregaram aquela chave, dois dias antes do meu prazo, me senti uma nova pessoa. Saí da imobiliária, saltitando em direção ao MEU apartamento. O dia me parecia mais ensolarado do que quando saí de casa, o céu mais azul, as pessoas mais bonitas.
Entrei, tranquei a porta e passei a mão em todas as paredes para acreditar que não era um sonho. Sentei no chão e chorei. Emoção? Alívio? Gratidão? Acho que um misto de tudo isso e mais um pouco.
Corri para casa, providenciei os materiais, voltei e fiz uma boa faxina.
No dia seguinte, um dia antes do prazo, às 8 horas da manhã começou minha mudança.
Quando tudo já estava no caminhão, restando apenas minha cachorrinha, eu e a mala de documentos, enquanto me despedia daquelas velhas paredes que tanto viram e ouviram, ouvi um ruído estarrecedor vindo da cozinha. Parecia que algo desmoronava. Assustada, corri para lá e fiquei aterrorizada ao ver que todo o piso de lajotas grandes se soltara e as lajotas levantavam-se em ângulos por todo o espaço. Um calafrio percorreu meu corpo e chorando ainda pisei sobre as lajotas próximas da porta para que ela pudesse ser fechada. Passei a chave e não olhei para trás.
Ao contrário do que eu pensava, comigo seguiram todas as lembranças boas e más e os fantasmas meus companheiros que agora já não me assustam tanto.
Com calma, um bom tempo depois, entendi que aquelas chaves, recebidas com tanta apreensão, haviam feito de mim uma outra pessoa. Uma pessoa capaz de existir sozinha.
Deixei a Agatha, minha fiel cadelinha, no pet shop para um banho e segui rumo ao novo apartamento, em tempo de chegar antes do caminhão de mudança. Abri portas e janelas para receber a gloriosa luz solar daquele sábado histórico. Testei as torneiras e notei que não havia água quente. Informei ao zelador que imediatamente veio e apenas abrindo um registro resolveu o problema.
Depois de uma longa espera eis que chega o ajudante do motorista e me informa que minha mudança havia ido para o depósito da empresa, pois antes das 20h não era permitido o estacionamento de caminhões naquela via, então, iriam transferir meus pertences para peruas e assim, entrar e descarregar diretamente na garagem. Comecei a me preocupar...
Chega a primeira remessa e a mesa da sala de jantar não passa pelo vão da porta. A mesa não é desmontável. Necessário se faz retirar a folha da porta para aumentar o vão e assim passar a mesa. Deu certo. Ufa!
Começam a chegar as caixas. O motorista carregava o elevador na garagem e o ajudante retirava as caixas no meu andar e levava para dentro. Expliquei: “As caixas estão etiquetadas, cozinha, sala, quarto, para facilitar a distribuição”. Ele me olha, coloca a caixa na minha frente e pergunta: “Esta aqui, vai pra onde, dona? Não sei ler”. Lá se ia toda minha organização por água abaixo.
Tinha que segurar a cachorra, pois a essa altura ela já chegara do banho e tentava desesperadamente fugir dali, e ainda ficar lendo caixa por caixa. Desisti. Pedi que colocassem tudo na sala e pronto!
Descarregada a mudança, tudo em ordem, nada quebrado, encerro meu dia lá pelas 22 h.
Como sempre fazia minhas refeições na empresa, e para mudar descongelara a geladeira e o freezer e me desfizera de quase tudo que era comestível, me dei conta que tinha água, açúcar, bolachas salgadas, ração de cachorro, pó de café e arroz, mas o gás ainda não estava ligado. Nem me passou pela cabeça, pedir à portaria, que solicitasse a entrega de alguma refeição. Ainda estava em estado de choque com a mudança. Comi as bolachas com água e açúcar, enchi a banheira e ali, envolvida por aquela deliciosa água quente, agradeci a Deus e comecei a sentir que tudo valera a pena.
Mas a Agatha não pensava assim. Tudo o que fazia era latir, uivar, chorar e arranhar a porta tentando sair. Para ela ali não era o seu lar . Queria ir embora de qualquer jeito. Só se calava quando eu sentava a seu lado. Naquela noite, dormiu na minha cama.
Domingo pela manhã, tentei sair para ir ao supermercado, mas ela gritava tanto que voltei dali mesmo, do elevador. Levá-la e amarrá-la na entrada do supermercado, nem pensar, ela faria um escândalo e eu não tenho nervos de aço para isso. Acho que o sossego das pessoas deve ser sempre respeitado.
Coloquei-a na coleira e pensei “há de existir algum boteco, onde se possa tomar um café da manhã acompanhada de cachorro”. Andei por dois quarteirões desertos e todos os bares estavam fechados. Normalmente funcionam de segunda a sexta, pois fornecem refeições do tipo PF.
Seguindo por uma rua mais sofisticada, deparo-me com um aconchegante estabelecimento, tipo café, bar e restaurante, com mesas nas partes interna e externa. Olho as mesinhas do lado de fora, um cheirinho bom de café me belisca o estômago. Arrisco perguntar a uma simpática garçonete que ainda trabalha lá, se poderia sentar-me ali e tomar um café com minha cachorra. A resposta foi afirmativa e com a Agatha debaixo da cadeira, tomei um maravilhoso café com leite mais pão com queijo frio, do jeitinho que eu gosto. E a Agatha, devido à ansiedade e sem que eu percebesse, comeu todas as flores da jardineira que havia ali ao lado. Desculpas pedidas e aceitas, fecho a conta e agradeço.
Todas as vezes que passo por ali, lembro-me daquele dia, cumprimento a garçonete e de vez em quando tomo um cafezinho expresso.
Segunda-feira. Preciso trabalhar. Vou e deixo o bicho em casa. Trabalho meio expediente – a patroa é a filha – quando chego, ouço os latidos lá da portaria. Olho para os porteiros: as carinhas boas como sempre.
Terça-feira. Resolvo deixar o bicho no quarto, com todo o conforto, água, ração, biscoitos, edredom no chão, janela aberta e porta fechada. Pelo menos assim não se ouviria os latidos do lado de fora, nas áreas comuns do prédio. Menos mal. Cheguei a pensar que o problema estava resolvido e que um dia ela acostumaria com o novo lar. Que ilusão!
Nesse dia, trabalhei o período todo e à tarde, ao chegar ao prédio as carinhas dos funcionários já não eram tão boas assim. Uma moradora ameaçara ligar para a Sociedade Protetora dos Animais e me denunciar. Uau! O que fazer?
Ao abrir a porta da sala, deparo-me com ela, à minha espera, exausta, arfando o peito, com a língua roxa, toda babada e ensangüentada. A casa uma bagunça, cacos de madeira espalhados pelo chão e um buraco enorme, aberto na porta do quarto, feito por aquela frágil cachorrinha que assim se libertou do cativeiro e já se preparava para fazer outro na porta da sala que já estava toda arranhada. Fotografei, jamais alguém acreditaria se eu contasse.
Foi a gota d´água. A partir desse dia minha mãe passou a ficar em casa de segunda a sexta para eu poder trabalhar. Alguns acharão exagero os meus mimos com a Agatha, outros até poderão sugerir, como já o fizeram que me livrasse dela, mas apesar dos pesares e acima de todos os direitos dos animais, está a minha ligação com esta beagle que não assimilou a mudança e que é a única coisa que me restou de um filho que se foi, além da eterna saudade.
E, se alguma fraqueza restou-me depois de tudo o que passei, é meu amor por essa criatura inocente, que me ama e tudo o que faz é estar sempre alerta para não me perder de vista. (Escrito em algum dia de 2005).
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