sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Contando ninguém acredita...

Houve um tempo em que morei em Mogi das Cruzes.                                                                                    Desse tempo quero deixar aqui minhas memórias.

Meu carro ainda era o fusca 66 azul jeans. Saí da Vila Lavínia, Mogi das Cruzes, em direção ao centro para ir pegar meu marido, às 18h na Elgin. Estávamos minha sogra, meus filhos Maria Cristina e José Cláudio e eu no carro.

Seguia pela Rua Ipiranga atrás de um ônibus da Eroles (única empresa de ônibus urbano em Mogi à época. Não existe mais). Ao chegar no semáforo com a Dr Deodato, este fechou e o ônibus que ia à minha frente avançou o sinal e parou bruscamente com a parte da frente no cruzamento das ruas.  Parei também, mas muito próximo daquele veículo que, para sair do cruzamento deu marcha a ré. Foi tudo tão rápido que só o que fiz foi acionar a buzina, mas já era tarde, ele abalroou meu amado fusca, fazendo um grande estrago.

Desci do carro feito onça, de bobes nos cabelos (parecia a dona Florinda, amada do professor Girafales e mãe do Quico, amigo do Chaves)  – dali a pouco deveria ir para a faculdade – e comecei a pedir que chamassem a polícia para fazer o BO. Chamei o motorista de irresponsável por dar ré sem olhar. “Podia ter matado meus filhos!”. Estava descontrolada e desolada.

Imediatamente, não sei de onde, aparece um policial e o motorista imediatamente conta a sua versão do que havia acontecido:

- Parei no semáforo e como pode ver, essa louca não parou, bateu atrás do ônibus e agora quer pôr a culpa em mim – olha para o cobrador e pergunta: “Não é verdade?” – ao que este, olhar baixo, responde: “É...”.

Só lembro que voei no colarinho daquele infeliz motorista e o sacudia e dizia que ele não era homem pra assumir o que tinha feito, enquanto o policial pedia para me acalmar sob pena de ter que me conduzir à delegacia por agressão. E os curiosos se aglomerando...

A situação era surreal. A frente de um carro dirigido por uma mulher, com bobes na cabeça, enfiada debaixo da traseira de um ônibus dirigido por um motorista profissional HOMEM. Um círculo de homens em volta e nenhuma testemunha que não fossem minha sogra e as crianças. O ano era 1972. Em quem vocês acreditariam?

Sai dali chorando de ódio e depois de pegar meu marido e levar os filhos para casa fomos à delegacia e registramos o BO. 

No final do processo perdi a causa, pois, “como informado pelo motorista e TESTEMUNHAS (que assinavam o seu depoimento), eu havia batido atrás do ônibus” e, portanto, não fazia jus ao ressarcimento por parte da Eroles, do gasto com o conserto do carro.


quarta-feira, 23 de setembro de 2020

MEU PASSADO ME CONDENA

                             Houve um tempo em que morei em Mogi das Cruzes. 

                        Dessa época quero deixar aqui minhas memórias

Eleições chegando, época do salve-se quem puder e como puder  e eis que com tanta motivação,  lembrei-me de fatos  de outra eleição, esta nos anos 70, que não me causam orgulho .

Era época de campanha política e, em Mogi como em qualquer lugar deste imenso Brasil, época do “vale tudo” pra se eleger ou reeleger.


Era voluntária numa comunidade (“comunidade” não era como hoje, uma palavra para definir de forma  politicamente correta uma “favela”, que nem por isso deixa de ser “favela”), como dizia, era voluntária  e tinha acesso a diversas pessoas  carentes ( como se falava naquela época), isto é, “menos favorecidas”. Pra falar a verdade ainda prefiro o termo “carentes”, pois são pessoas que realmente carecem de bens de consumo e serviços. Não gosto de “menos favorecidas”, pois dá a falsa impressão de que são favorecidas em alguma coisa. Afff... Mas voltemos ao que interessa.

Atuava com muita gente e como tal interessava aos candidatos para que os promovesse junto aos assistidos, não citarei nomes, apenas fatos, assim tive à minha disposição para esquentar a campanha de um candidato, diversas vantagens que poderiam ser usadas a meu critério, EM NOME DO CANDIDATO. Próteses dentárias, fotos para documentos, emissão de certidão de nascimento, condução para ir ao cartório eleitoral para tirar o título, etc, tudo bancado pelo candidato por meio de VALES assinados pelos apoiadores. Não era mais costume dar um pé de bota ou metade de uma nota de $$ antes da eleição e só formar o par depois se o candidato fosse eleito. Ainda bem!

Vendo de um lado os “menos favorecidos”, só lembrados em épocas de campanha eleitoral e de outro tantas oportunidades de ajudá-los, cai em tentação e assumi a máxima de que “os fins justificam os meios” (erroneamente atribuída a Maquiavel, não é isso que ele quer dizer na obra “O Príncipe”) e meti o pé na jaca como dizem hoje em dia.

Eu entregava o vale à pessoa, orientava como proceder, mas nunca, nunca mesmo, disse vote em FULANO ou SICRANO (uma pequena omissão), bem como nunca usei de vantagens em proveito próprio. 
Desonesto, antiético, amoral... Tudo isso e mais um pouco. Mea culpa! Mea culpa! Mea maxima culpa!

Como disse no início, não me orgulho disso. Como cristã jamais poderia agir dessa forma, mas não me arrependo de tê-lo feito. No curral eleitoral vigente, isso nada mais era do que “dançar conforme a música”, sem prejudicar ninguém a não ser o próprio candidato que não deveria, como não devem os de hoje, “comprar votos”, e que foi eleito na ocasião.

Em compensação, o sorriso das mulheres ficou mais bonito, crianças foram registradas, documentação de muita gente foi atualizada e fotos 3x4 para documentos feitas a rodo.


sábado, 5 de setembro de 2020

Eleições - 1982


Houve um tempo em que morei em Mogi das Cruzes. 
Dessa época quero deixar aqui minhas memórias

Meu esposo tinha paixão pela política e sonhava um dia candidatar-se a vereador. Muito bem relacionado na empresa e na comunidade, entendeu que a hora havia chegado. Era o ano de 1982 e em 15 de novembro o eleitorado brasileiro seria chamado a eleger os governadores que administrariam seus estados pelo período de quatro anos, a contar de 15 de março de 1983. Uma eleição histórica:  a primeira eleição direta para governadores de estado desde os anos 1960. Era o período da ditadura militar.

Neste pleito valeria o "voto vinculado": o eleitor teria que escolher candidatos de um mesmo partido para todos os cargos em disputa (governador, prefeito, senador, deputado federal, deputado estadual e vereador), sob pena de anular seu voto.

Candidatura consolidada era hora de fazer a campanha. Confesso que nunca achei uma boa ideia essa decisão, mas era a escolha dele e se não o fizesse passaria o resto da vida imaginando, e se....

Comícios feitos de cima do caminhão de um conhecido, distribuição de material de campanha e de “favores”. Raros aqueles que se propunham a ajudar por idealismo ou mesmo amizade. Os interesses falavam mais alto a coisa estava ficando cara.

Não fui às ruas, trabalhava em casa confeccionando faixas e cartazes com a ajuda das crianças maiores. Uma agitação até que interessante, até o dia em que resolveram realizar uma reunião em casa para organizar os grupos de trabalhos nas ruas.  Esse foi meu primeiro estresse da campanha.

Chovia muito naquela noite e a Rua Taiaçupeba embora desse acesso à Usina de Asfalto do “Boy”, ainda era uma lama só. As pessoas que chegavam recebiam o lanche que preparamos e acomodavam-se em nossa sala como podiam.

De repente, a sala estava lotada!  Havia gente sentada em cadeiras, em mesinhas, degraus, nos sofás e no encosto dos sofás com os pés cheios de lama no assento. Uma cena que jamais imaginaria ver. E pior: ter que limpar!

Com a perspectiva de uma votação expressiva para o candidato do partido ao Governo do Estado – André Franco Montoro, os peemedebistas achavam que o voto vinculado levaria à vitória um dos seus três candidatos a prefeito: Rubens Magalhães,  presidente do Diretório Municipal do PMDB, Aécio Yamada (que tiraria dividiria votos da colônia japonesa com Junji Abe) e o professor Waltely Aquino de Oliveira cujo vice era  o promotor público e professor universitário Antônio Carlos Machado Teixeira (advogado da Elgin Máquinas).

Devido à força política do prefeito Waldemar Costa Filho, meu marido, como boa parte dos cidadãos mogianos, não punha fé no PMDB e embarcou numa canoa furada, completando como um dos vereadores, a chapa da ARENA:

Governador - Reinaldo de Barros
Senador - Adhemar de Barros Filho
Deputado Federal - Estevam Galvão
Deputado Estadual - Mauricio Najar
Prefeito – Junji Abe

Numa reviravolta de última hora o candidato a prefeito Waltely passou a vice e seu vice o Dr. Antônio Carlos Machado Teixeira a candidato a prefeito que, numa disputa acirrada, surpreendeu e foi eleito, mais pelo prestígio de Franco Montoro e do voto vinculado, do que por si mesmo. 

A chapa conseguiu eleger senador, deputado federal e deputado estadual.

O novo prefeito era o candidato apoiado pela Elgin então, obviamente, meu marido perdeu a eleição, o emprego e por algum tempo o entusiasmo pela política. Era hora de correr atrás do prejuízo.

Notas:
(1) A cédula era a que aparece na foto.
(2) Recorri à memória e à internet para escrever. Possíveis falhas, me corrijam por favor. Lá se vão 38 anos...

quarta-feira, 29 de julho de 2020

VIZINHOS

Houve um tempo em que morei em Mogi das Cruzes, desse tempo quero deixar aqui minhas lembranças



Moramos na Vila Lavínia em Mogi das Cruzes,  por quase cinco anos. Era um conjunto do BNH construído em quatro ladeiras que desembocavam na Avenida Francisco Ferreira Lopes na altura da Empresa de Mineração Caravelas Ltda.

Casas simples com quintal aos fundos e jardim na frente. Todas iguais. A nossa era a Rua B, a segunda à esquerda de quem vem do centro pela avenida.

Na rua A morava a S., uma professora que tinha um filho pequeno. Separada do marido, havia quem por ignorância e preconceito a difamava. Não teve dúvida: certo dia, pedagogicamente e com razão, quebrou a vassoura nas costas daquela, que com certeza aprendeu a lição.

Na minha rua, fomos os primeiros a chegar, seguidos das famílias de outros funcionários da Elgin, Brito/Amélia e Jairo/ Dora, e filhos, nas duas casas abaixo. Depois chegou a família da Cecília, vizinha da casa de cima.  Logo as quatro famílias se tornaram amigas e as crianças faziam a festa.

Em frente à nossa casa morava a dona Cesarina com a filha moça. Aquela, uma senhora simpática e prestativa que costurava e gostava de ensinar a fazer quitutes. Com ela aprendi a fazer Crostoli e bife à milanesa com farinha grossa. Muito bom.

Mais abaixo, dona Flora plantava aveia e cinerária para vender ao laboratório de homeopatia e seu Osvaldo, o esposo já aposentado, fazia pequenos serviços de pedreiro e pintura. A nossa salvação.  Também sabia fazer suspiros como nunca os vi.

A Diva, o Eugênio e um filho vieram de São Paulo como nós. Foi amor à primeira vista. Uma amizade daquelas que são para sempre, mesmo que a distância separe.

Jamais esquecerei da dona Linda e do seu Olavo. Não tínhamos amizade, apenas cordialidade de vizinhos, mas na rua diziam que eram muito unidos e que ela, vaidosa, sempre maquiada e bem vestida, o acompanhava nas pescarias e caçadas. Adoeceu, esclerose múltipla, e morreu em meus braços ao chegar com parada respiratória ao Hospital Santana, pra onde a levei ao socorrê-la.  Ficamos lá, naquele necrotério, só ela, eu e um bebê falecido, enquanto seu Olavo cuidava das providências necessárias. “Não deixa a linda sozinha” – me pediu.  Foi dele que ganhei o prato da foto. “A Linda iria gostar que ficasse com a senhora”, disse ao me entregar dias depois do enterro.

Depois que seu Olavo mudou, a casa foi comprada por um jovem enfermeiro do Hospital das Clínicas: Raimundo Nonato. Comprou um fusca, tirou carta, mas dirigia tão mal, que me pedia para pôr o carro na garagem quase todos os dias. Não podia dar certo. Morreu numa madrugada de neblina, num acidente com caminhão, na estrada de Jundiapeba.  A mãe veio de Belém do Para e ficou com a casa. Achávamos engraçado, por que quando a neblina cobria a vila no inverno, ela falava: “A “neve” seca lá de Belém é pior do que a daqui”.

Na Rua C, só conheci a espanholinha graciosa da casa que dava fundos para a minha, por causa de um acidente com a bebê de 40 dias, que se afogou com o chá e parou de respirar. Ela gritou por socorro e corremos à Clínica São Nicolau com a criança ficando cada vez mais roxa e ela gritando. Uma pronta e rápida aspiração e lá estava a garotinha viva, rosada, e nós duas chorando. Foi a única vez em que conversamos, mas ao deixá-la em casa vi os lindos móveis de madeira entalhada, feitos pelo pai dela, como me contou.

A dona Ivete e a filha moravam na última rua. Conversávamos na rua, às vezes, sobre trabalhos manuais e receitas. Não era amizade, mas fiquei muito abalada quando soube que, naquele incêndio do Joelma em 1974, morreu a nora dela grávida.  Havia ido ao prédio para fazer os acertos da rescisão do seu contrato de trabalho.

Fomos os primeiros da nossa rua a comprar carro e eu já tinha carta, por isso era quem corria quando alguma emergência aparecia.
Enquanto moramos naquela vila, nasceram muitas crianças filhas de nossos vizinhos e amigos, inclusive meu terceiro filho, o Walter, primeiro mogiano da família.

Ao revisar este texto, muitas lembranças vêm à mente, mas deixarei para outras ocasiões; são muitas emoções para um dia só.

De como fui parar em Mogi das Cruzes

Houve um tempo em que morei na cidade de Mogi das Cruzes e 
desse tempo quero deixar aqui minhas lembranças


No final da década de 60 meu marido trabalhava no escritório da Elgin Máquinas, que ficava na Av. Barão de Limeira, na cidade de São Paulo.  Tínhamos uma filha, Maria Cristina, com 3 anos, eu estava grávida, trabalhava como professora substituta numa escola de emergência e havia prestado concurso para o magistério público do estado de SP.

1970. Em maio nasce meu filho José Claudio. Logo depois a Elgin transfere toda parte de escritório para Mogi das Cruzes e quase concomitantemente sai o resultado do concurso. Aprovada, deveria escolher classe como professora efetiva. Marido transferido para Mogi, devíamos nos mudar e a minha escolha seria uma escola daquela cidade.

Nessa época, entrei para a auto escola. Embora não tivéssemos carro, meu sonho era aprender a dirigir.

Num sábado, acho que era agosto, meu marido nos levou para conhecer Mogi. Fomos de trem, que convenhamos não era um bom cartão de visitas, com aqueles vidros quebrados e as portas que não fechavam direito.  O tempo estava quente e seco e ao chegarmos ventava muito levantando poeira e fazendo voar papéis que estavam espalhados. Estava muito desagradável para andar com duas crianças. Demos umas voltas próximo à estação e em uma praça e voltamos para São Paulo. A primeira impressão da nova cidade não foi boa. Mas o que não tem remédio, remediado está.

A data para a escolha de escola aproximava-se. Como escolher sem conhecer nada?  Meu marido falou com a sua secretária na Elgin e ela gentilmente fez uma relação de escolas por ordem “de bom ambiente de trabalho e boa direção”, de acordo com a orientação de uma parente sua que era professora. Nunca conheci nem uma, nem outra, mas sou eternamente grata pela ajuda.

No dia marcado lá vou eu com uma lista de cinco escolas. Estava bem classificada, mas limitada nas possibilidades de escolha. Mas, como o que é do homem o bicho não come, na minha vez, lá estava ela disponível, a primeira opção da minha lista: Grupo Escolar Rural Antônio Olegário dos Santos Cardoso. Bingo!  As coisas começavam a se encaixar.

Finalmente, em setembro de 1970, seguimos de mudança para Mogi das Cruzes. A casa ficava no bairro do Socorro, um sobrado muito confortável. Ali ficamos apenas três meses, pois logo compramos a casa do BNH na Vila Lavínia, para a qual mudamos em dezembro. “Aluguel só é bom para quem o recebe”, dizia meu avô e meu pai.


Nessa casa festejamos em 12 de outubro o 4º aniversário de nossa filha com a presença dos avós e tias; recebemos minha amiga Lúcia de São Paulo para que o noivo que havia passado no vestibular, tomasse banho e tirasse toda tinta jogada nele pelos veteranos. Veio também a minha prima Márcia que apareceu por conta do aniversário de nossa avó que estava conosco.

Nesses dias havia um parque de diversões em Mogi e aproveitamos para dar uma volta por lá. Fomos todos, inclusive a avó e a prima. Foi bem divertido, especialmente por que ganhei um elefante de pelúcia no tiro ao alvo de rolha. Sim, eu tinha boa pontaria. Azul, enorme, sentado o bicho era mais alto que minha filha.

No dia 13 de outubro fiz em São Paulo meu exame de motorista e conquistei a desejada CNH.

Em dezembro mudamos para a casa da Vila Lavínia. Ainda não conhecia a escola onde em fevereiro deveria começar a lecionar. Sabia que ficava na zona rural, que não havia condução regular para lá. Ou se ia de carro, carona com o caminhão do leite ou com o único ônibus da Eroles que saía de Mogi às 6h. 

Logo no começo de janeiro compramos um fusca 66, azul jeans e, por ocasião do aniversário de minha sogra, no dia 16, que sempre passava a data conosco, fizemos um passeio para conhecer a escola. Grupo Escolar Rural Antônio Olegário doas Santos Cardoso - Adachi.

Segui pela Av. Japão como me ensinaram, deixando a cidade para trás pelo caminho que ainda era de terra.  Encantavam-me aquelas imensas áreas de campos, com casinhas aqui e ali. Tudo muito deferente daquilo com que uma paulistana nata como eu estava acostumada.   Depois de certo ponto, a vegetação ficava mais densa e na altura do Oropó, atravessei a pequena ponte sobre o Rio Jundiaí, passei por algumas plantações de pessegueiros e logo estava diante da escola.

Um cenário nunca pensado por mim. Prédio rústico, telhado com madeiramento de eucalipto exposto, em meio a um enorme terreno todo aberto, com outra construção mais adiante, rodeado de plantações e só. Era o período de férias, estava todo fechado. Nem uma alma por ali. O mato crescia próximo ao muro da varanda que tomava toda a frente do prédio.

Desci do carro e fui em direção à escada de acesso ao prédio onde fui recepcionada por uma cascavel que ali tomava sol e, importunada com a minha presença, começou a descer os degraus. Como num passe de mágica estava eu dentro do carro, motor ligado, saindo daquele lugar.

O prédio principal era composto por 5 salas de aula, onde funcionavam classes do pré à 4ª série, apenas no período da manhã, sala dos professores e diretoria. Na lateral direita ficavam dois banheiros rústicos e a cozinha, esta com fogão à lenha e que dava para um galpão coberto.

No primeiro dia de aula encontrei tudo bem cuidado, limpo, mato roçado, nada de cobras. A recepção não poderia ter sido melhor. O diretor, professor Sylvio Takahashi, muito simpático, acolhia as professoras, as crianças e seus pais e apresentava a novata, eu, a todos.

Desse dia lembro da Rose, professora da 1ª série, Stella, do pré, José Fonseca, professor da 4ª série, dona Antônia, a servente, uma senhora gorda e simpática e da Benedita, a merendeira, das mãos de quem comi muitos quitutes naquela escola. Estavam lá outras professoras cujos nomes me fogem. Foi-me atribuída a classe da 2ª série.

Nesse dia encerrava-se o ciclo de minha chegada a Mogi e começava uma nova etapa na minha vida, agora com casa, emprego, carro, habilitação e amigos.









sexta-feira, 24 de julho de 2020

O BARATO SAI CARO, já dizia minha mãe

Houve um tempo em que morei na cidade de Mogi das Cruzes e desse tempo quero deixar aqui minhas lembranças.


Agosto de 1975



Morávamos na Vila Lavínia, Mogi das Cruzes, num conjunto do BNH, desde 26 dezembro de 1971. Lembro a data por causa do Natal e por que passamos o dia a pão e vinho, como o Marcelino.  A filha foi para a casa de amigos e o bebê apenas tomava mamadeira. A casa era boa, mas eu queria uma com mais quintal, com terra para plantar. 

Depois de muita procura, finalmente achamos a casa dos meus sonhos, ou melhor, que viria a ser. A casa da Rua Taiaçupeba, hoje José Cury Andere, Alto do Ipiranga.

Terreno grande, parte de uma chácara, casa inacabada, sem muro na frente. O preço “galinha morta” no jargão imobiliário e com bons motivos: ali havia sido assassinado um rapaz, como comentavam. Mortos são mortos, vivos é que me metem medo. Muitas histórias nessa casa, mas aqui quero lembrar o dia da mudança.

Nossas coisas eram poucas e a situação financeira não era lá essas coisas.  Meu esposo conseguiu junto à Elgin, onde trabalhava, um caminhão emprestado com motorista e dois ajudantes.

Rapidamente chegamos à nova casa e acomodávamos as coisas que eram trazidas pelos carregadores, quando um barulho estranho acompanhado de gritos chamou nossa atenção.

Corremos à frente da casa e o cenário era assustador. O caminhão sem freios desceu de ré, arrastou nosso fusca velho que virou em direção à lateral do terreno, rebaixado para ser garagem e caiu no buraco, servindo de apoio e não permitindo que o caminhão derrubasse a parede do vizinho.

Sem maiores tragédias, passado o susto e descarregadas as poucas peças que restavam, o caminhão se foi com seus ocupantes completamente embriagados, pois como constatamos a seguir, as poucas garrafas do nosso barzinho haviam sido todas esvaziadas no breve trajeto entre as duas casas.

Fotos: A casa que foi nossa e o trecho da rua, como estão agora. Extraído do google maps.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Tudo pode ser sorte ou azar, depende do que vem depois


Houve um tempo em que morei na cidade de Mogi das Cruzes e desse tempo quero deixar aqui minhas lembranças.


31 de dezembro de 1978

O caçula, onze meses, estava com mais uma de suas crises de bronquite. O calor úmido de Mogi das Cruzes não é para os fracos, já dizia o saudoso pediatra Dr Jorge Nassu.  Fomos todos ao Pronto Socorro da Santa Casa. E ali foi nosso réveillon com o pequeno na inalação.

Chegamos em casa na primeira hora de 1979 e do portão ouvíamos o toque do telefone. Tocou e parou algumas vezes até que abrimos todas as portas e chegamos até ele.

Era da paróquia do Jardim Universo, do nosso amado Padre Orfeo. Uma voz afoita perguntava se estávamos com os nossos talões da rifa que havia corrido há pouco pela Loteria Federal. Sequer lembrávamos da existência deles. Não. Não estavam em casa.

No sábado, dia 30, data final para prestar as contas, meu esposo, que havia vendido apenas um número (eram dois talões com dez números cada) havia feito o acerto – um baita prejuízo - mas os talões ficaram no escritório da Elgin.

A pessoa ao telefone dizia que pelo que constava na prestação de contas o número ganhador estaria em nossos talões e se assim fosse, a pessoa deveria ir receber o prêmio.

Ansioso – e se o ganhador fosse o único número vendido? -  lá vai meu marido à Elgin àquela hora, resgatar os talões e constatar que sim, ele havia sido o feliz ganhador de um Fusca Amarelo, 1978, 0km.

Uma triste cena


Houve um tempo em que morei na cidade de Mogi das Cruzes e desse tempo quero deixar aqui minhas lembranças.

Era a década de 70, eu morava na Rua Taiaçupeba, Alto do Ipiranga, Mogi das Cruzes em uma pequena chácara. Naquele enorme descampado nossa casa era separada do cemitério “dos pobres” pela casa vizinha à nossa e por um grande vale de mato rasteiro.

No afã de preparar a terra para fazer a horta, ia sempre a uma madeireira que ficava no bairro da Vila Industrial, no outro lado da cidade, para pegar serragem. Numa das vezes em que voltava de lá, com meu velho fusca 77, ao iniciar a subida da ladeira que levava ao cemitério, deparei-me com uma cena que jamais podia imaginar ter à minha frente, vivendo como então vivia em uma cidade de porte médio.

A avenida praticamente deserta, pois além das poucas casas existentes por ali, ela levava apenas ao cemitério e à Usina de Asfalto da Prefeitura. O céu encoberto e a manhã fria tornavam aquele cenário mais triste. Na calçada da direita, um homem humildemente vestido caminhava lentamente, cabisbaixo, levando algo debaixo do braço que me fez parar o carro para conferir se realmente era o que eu achava que estava vendo. Era. Um pequeno caixão funerário branco. Alinhei o carro com o homem, parei, desci e abordei-o perguntando se me permitia levá-lo.

O cemitério distava dali aproximadamente um quilômetro. Nem pensei na situação do carro, lotado de sacos de serragem e bem sujo, pois era muito utilizado para transportar materiais de construção. Isso tudo sem falar da minha aparência – vestida como estava com roupas de trabalhar na terra, velhas e sujas.

Limpei o banco do passageiro da melhor forma que pude, segurei aquele triste invólucro enquanto o homem se acomodou, daí coloquei em seu colo e seguimos.

No breve trajeto ele me contou que o bebê falecera logo após o parto, muito complicado, que a esposa estava internada e não passava nada bem e que ele não tinha dinheiro para providenciar o enterro. Ganhou o caixãozinho e com a ajuda das enfermeiras arrumara o anjinho, fechara e agora levava para que fosse sepultado.

Chegando lá, segurei novamente aquela preciosa carga, enquanto o pai descia do carro e o acompanhei até a administração para checar se tudo daria certo. Confirmado, segui para casa onde tinha meus filhos, afazeres e horários a cumprir.

Já vi muita coisa triste nesta vida, passei por momentos dolorosos, mas nunca vivenciei uma solidão tão grande e tão dolorida como a daquele jovem pai.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Não Vomite. Basta eu!



"Velho que não tem dor já morreu, só precisa enterrar"
"Seu" Paulo, um velhinho boa gente demais e cheio de dores.

Segunda feira, 9 de março, 10h

Acordo depois de poucas horas de sono e sinto-me mal, muito mal. Sem forças para ficar em pé. Vomito há quase 20h e a desidratação já me pega. Achava que fosse como outras indisposições estomacais, que já-já ia passar. Mas não. E agora? Chamar as irmãs? Os primos? Sei lá o que tenho. É bom ficarem longe.  Uma ambulância.  Razoável, profissional. Como meu convênio anda mal das pernas, não paguei a mensalidade dando um tempo pra decidir se cancelo ou não. Entreguei nas mãos de Deus e pedi uma resposta. "Ó Senhor, não precisava ser tão direto!". Não posso recorrer a ele, ao convênio. A solução: SAMU.

24 hours earlier...

Domingo, 8 de março, Dia da Mulher. Missa. Almoço. Uma árvore que cresce sem pedir permissão e no outono soltará as folhas que irão entupir a calha. Poda! Já o fiz tantas vezes nestes 16 anos que aqui estou... Mas desta vez será de forma mais radical, que dure. Feito! Resta ensacar. O céu se fecha, venta e alguns pingos anunciam o que virá depois. Acelero o trabalho. Os espinhos não perdoam. Pronto. Banho, chá com biscoitos e geléia de mirtilio da amiga Rosa. Um filme. Descanso... SQN.

Segunda feira, 9 de março, 14h

192: Boa tarde. Emergência. Com quem eu falo?
Identifico-me, explico a situação e peço ajuda.
192: Tem febre? Tosse? Dor? Falta de ar?
- Não. Não. Não. Não. Vômito há quase 24h, diarréia. Não posso mais ficar em pé.
192: Sua solicitação está registrada. No momento todos os nossos veículos estão na rua. Assim que houver disponibilidade enviaremos um.

Segunda feira, 9 de março, 16h

Ligo para o SAMU.
192 - Já pedimos o veículo, aguarde.

Segunda feira, 9 de março, 18:30h

O celular toca.
192: Boa tarde (boa? Pra quem?!). Sou a doutora (...) de Emergências do SAMU. O que está acontecendo AGORA, dona Lidiaaaa? (???? Ela me conhece???)
- Como já relatei ao atendente, estou ... - Ela interrompe:
192: É que a senhora sempre liga solicitando resgate... (tá explicado o AGORA!)
Interrompo a interlocutora (ou seria interloucotora?). "Nunca chamei o SAMU, é a primeira..."
192: Ah, sim, sim, devo ter confundido com outra pessoa... Vou providenciar o pedido de uma unidade de atendimento. Mas deve demorar, pois virá de outro distrito.

"VOU PROVIDENCIAR O PEDIDO..."

Segunda feira, 9 de março, quase 20h

Chega o veículo providenciado. O primo atende, a meu pedido por telefone, pois deveria deixar a casa aberta e os medicamentos que tomo à vista. Atendentes impecáveis. Fazem a primeira triagem in loco e outra no percurso. Sinais vitais. Glicemia. Alergias. Etc. Etc. Debuto no SAMU e faço minha primeira experiência como paciente de ambulância.

Começa o embate de para onde vão me levar. Tem que ser hospital público. Peço o hospital a que tenho direito. É o mais próximo, mas está fora da rota. Help me! Levam para outro, dentro das minhas preferências. Meno male.

Idosa, necessito de acompanhante. O primo - anjo da guarda, angustiado me acompanha.

No hospital...

Sala de enfermagem semi vazia. Dois jovens em poltronas de atendimento, um rapaz e uma moça, um de cada lado, e um idoso em maca, todos recebendo soro. Dois enfermeiros, duas enfermeiras, um médico e um segurança que entra e sai, todos sem máscaras nem luvas, circulam por ali. Conversam, riem, tomam cafezinho.

Colocada também numa poltrona de atendimento (desnivelada, o que causa muito desconforto), sou atendida por uma enfermeira sem expressão facial, slowmotion, que enquanto coloca o acesso, faz as perguntas de praxe e confere os sinais vitais. Do meu lado esquerdo, o jovem, de alta, cansa de esperar e retira a parafernália da veia e deixa pendendo, balançando no suporte e pingando sangue. Levanta e dirige-se à saída. Um enfermeiro o barra. “Como?! Não pode fazer isso!!”.  Ri e faz tchau pra ele.

O cartaz enorme na parede avisa: "Proibido o uso de celular nesta área". Mas todos, eu disse TODOS, o utilizam. Afinal, regras foram feitas para serem quebradas.

Aparece um médico. As mesmas perguntas...

Explico tudo de novo, embora já esteja explicado na ficha que veio com o SAMU e naquela preenchida pela enfermeira slowmotion. Acrescento aí, que achava (ó pecado mortal! Paciente não é pra achar nada!), sim, achava que estava envenenada, ou melhor, intoxicada pelo veneno da  planta que havia podado, pois seu gosto não saía da boca e seu odor emanava de tudo o que saía de dentro de mim.

Nesse momento, meu primo, calado até então, tira do bolso um guardanapo com as folhas da planta em questão, que pegara caso fosse necessário - havia contado a ele, o que pensava. Mostra ao médico. Este nem olha. "Não sou botânico. Não entendo de plantas." E acho ( olha eu achando de novo...), acho que não entende nem de medicina, depois explico.

O primo sai, deve esperar lá fora.

São quase 22h e a coluna agora dói. Me conseguiram finalmente uma dor. A slowmotion entrega um frasco para eu colher urina. Só o frasco, sem o material protocolar de higiene íntima.  "Onde fica o banheiro", pergunto. "Segue por ali" - aponta para o lado do idoso, "entra naquela enfermaria e lá no fundo tem um sanitário".

Na enfermaria, uma única paciente, uma senhora idosa. Cumpro o rito e saio achando (achando de novo?!) que aquilo tudo não está certo. Não sabem o que tenho e não sei o que ela tem, e me mandam passar por dentro da enfermaria onde ela está e usar o mesmo sanitário...

Na volta, a slowmotion colhe sangue para exames e em seguida, coloca uma embalagem de soro no equipo e, enquanto regula o gotejar da medicação, pergunta se tenho alergia por algum medicamento. De novo?!! Já havia respondido a isso 4 vezes. "Sim, tenho alergia por Flagil, Ampicilina e Plasil". Ainda bem que perguntou!

Num solavanco, deixa por um segundo de ser slow e desconecta o recipiente com a medicação que adentrava o sagrado templo do meu corpo, como diz uma amiga. "Plasil?! - Foi o que o doutor prescreveu: Plasil, Dipirona e..." . Não lembro o outro.  Tá explicado porque acho que ELE não entende nem de medicina?
"Mudou o plantão e o outro plantonista ainda não chegou, quando chegar, fala com a senhora". Explica a slowmotion assustada enquanto despeja o conteúdo da bolsa na pia e descarta a embalagem.

A jovem do meu lado direito termina de ser medicada e é liberada. O idoso da maca, senil, ora clama pelo Senhor dos céus, ora chama a polícia aos gritos. Aí me deu saudades do meu pai, que quando internado, também chamava a polícia, mas que diferença!  A este senhor ninguém dava atenção, parecia invisível, enquanto o meu pai era muito bem acolhido com brincadeiras por parte dos enfermeiros do Hospital Santa Rita. Deus os abençoe, como disse minha mãe em suas últimas palavras. Lá pelas 23h alguém vem pegar aquele pobre senhor.

Chega o doutor plantonista. Jovem, pinta de galã. Beija a enfermeira jovem, loira e eficiente na organização dos kits de enfermagem (mas slowmotion também). Deve ser por causa do protocolo. RSRS. Rindo para não chorar.

Uma equipe do SAMU entra com um paciente que é levado para uma sala. Um dos socorristas subtrai um punhado de luvas de uma caixa sobre o balcão e as coloca no bolso. Que situação! O segurança entra e sai o tempo todo. Haja café!

Médico: O que está acontecendo com a senhora?
Faz as mesmas perguntas. Pô, pra que serve a ficha? Ninguém lê? Lembro da minha irmã, de uma certa enfermeira que tentou matá-la com corticóide e da saga do Atenolol. Mas aí é outra história.

"Deus me deu pernas compridas, nenhuma preguiça e muita paciência" - desculpe Chico, pela adaptação, mas foi do que lembrei agora. Parecia um rosário, repete, repete, repete. Medicamento prescrito. "Agora tem que esperar a equipe que está entrando no plantão para preparar o que foi prescrito".

ESPERAR, o verbo mais conjugado naquela enfermaria slowmotion, onde, por incrível que pareça, àquela hora, eu reinava como única e absoluta paciente, já meio impaciente e invisível para aqueles cansados profissionais da saúde que se preparavam ostensivamente para a troca iminente do plantão.

Medicação colocada. Uns 40 minutos para correr. Resta ESPERAR que venham retirar a parafernália. Esperar, esperar. Afora a dor lombar que aumentou, dos sintomas trazidos me sinto melhor. Lembro do impaciente rapaz que se auto atendeu. Que tentação...

Terça feira, 10 de março 01h

Lar doce lar. Finalmente. Por enquanto...  Cansada, em jejum, medicada, durmo por muitas horas. Agora devo me hidratar e tentar me alimentar. Limpeza da casa, na medida das minhas forças, e descarte de toalhas, panos, tapetes, enfim de tudo que participou do espetáculo da véspera e antevéspera. Chá, torradas e soro caseiro. E esse cheiro da bendita planta que não sai da casa, ou será do meu nariz?  Como num mantra, repito: "Sou forte, saudável... Acho que estou quase curada". SQN.

Quarta feira, 11 de março

Um dia inteiro de recolhimento, descanso, abstinência, jejum, dieta líquida. Muito pertinente, é quaresma! E o cheiro continua... Não posso nem olhar para a planta que dá náuseas...

Quinta feira, 12 de março

Levanto animada - mental e espiritualmente - porque o estômago incomoda, as pernas fraquejam. "É assim mesmo", tento me convencer. "Vai passar, reage. Você já passou por isso. Força na peruca, se arruma, toma café e vai à luta. Hoje é dia de fazer o que você gosta - remexer no brechó". 

Gatorade em punho, lá vou eu, agora com novas responsabilidades, diminuir e organizar o brechó, hoje de portas fechadas para balanço. Somos apenas três pessoas. Muito trabalho.

Mas, como alegria de pobre dura pouco, as entranhas começaram a se rebelar e a distância entre o brechó e o banheiro da igreja quase não foi suficiente. Necessário se faz ir para casa, pegar documentos, chamar o UBER - não dá pra dirigir assim - e rumar ao pronto socorro do Hospital do Servidor, onde deveria ser bem atendida. DEVERIA.

Às 10h e 40, adentro o recinto do cadastro do IAMSPE. Um átrio, tipo anfiteatro, onde o atendimento começa.  L-O-T-A-D-O. Lembrei que já se cogitava sobre a chegada do COVID 19 e que uma pessoa já havia morrido em São Paulo vítima dele.  Não tinha escolha. Era o que tinha para o momento. Então: seja o que Deus quiser.

Quando alguém tossia, todos se entreolhavam. Uns mudavam de lugar, os que estavam em pé, as cadeiras estavam todas ocupadas e percebi que conforto e comodidade contam mais que  segurança, para certas pessoas que não desgrudam de seus assentos, nem para ceder lugar aos que mais necessitam.

Encostei em uma parede debaixo de um monitor, de frente para o outro. Foi o mais isolado que consegui. Os bips se sucediam, mas meu número não aparecia. Quase 2 horas depois sou chamada para o cadastro e outro tanto depois para a triagem. O movimento era atípico, informou uma atendente, e apenas um ou outro profissional por ali estava de máscara.

Movimento atípico também, da parte dos profissionais. Grupos de residentes novos circulavam pelos corredores e eram apresentados aos consultórios. Uma movimentação não usual. Um rito de preparação para o que estava por vir.

De vez em quando a Aurizete e a Celeny, amigas do brechó ou o padre me enviavam uma mensagem pra saber como eu estava. Se já havia sido atendida... Se precisasse de alguma coisa era só gritar... Depois de algumas horas, até eles desistiram. Eu não.

É bom esclarecer que não procurei minhas irmãs pois com certeza iriam comigo ao hospital, não haveria negociação e, a essas alturas, a última coisa que eu queria era ter que me preocupar com a saúde de outros. Já bastava o mal estar.

Depois da triagem fui encaminhada para as salas de espera dos consultórios, dois espaços. Salas só no nome. Corredores, com cadeiras nas laterais, apinhados de doentes e uns poucos acompanhantes, no meio dos quais passavam cadeiras de rodas e macas com pacientes em situação de mais urgência, que sumiam depois da barreira dos seguranças.

Quando cheguei, uma mulher insultava aos gritos uma jovem residente, com cara de paisagem, e um homem velho, que me pareceu não muito lúcido, acompanhado de outro homem velho, tossia escandalosa e propositalmente enquanto circulava em meio às pessoas. O mais lúcido punha-lhe a máscara, mas durava pouco.

Serventes promoviam a duvidosa limpeza dos banheiros e do chão, onde resíduos fisiológicos eram deixados pelas macas.

Acomodei-me em um canto, abaixada como os caipiras fazem, depois de mais de quatro horas em pé. Dali observava o comportamento estranho e às vezes surreal desses, que chamamos de humanos. Quando alguém tossia, um movimento disfarçado se fazia, pra lá ou pra cá. Mas as distâncias continuavam as mesmas - menos de 50 cm entre uns e outros. Jovens, sentados, absortos em seus celulares se faziam de cegos ante aos inúmeros idosos em pé que se apoiavam na parede, em bengalas, andadores ou acompanhantes. Grupos de pessoas, que devido à longa espera se tornaram "amigas", partilhavam lanches nada saudáveis, comprados pelos acompanhantes nas barracas do entorno do hospital, e, como é de se esperar, a farofada se espalhava pelo chão. Nem eu, que estava em jejum há 4 dias comeria aquelas guloseimas.

Finalmente fui chamada. Ali é pelo nome. Consultório 16. Chego à porta, peço licença. Ninguém responde. Entro. Pergunto se devo fechar ou deixar aberta a porta. "Fechada!". Sento-me sem ser convidada. A pessoa na minha frente não tira os olhos do computador. Homem, jovem, sem mais descrições para não comprometer, não me olha, só pergunta o que está acontecendo. O diálogo, se é que se pode chamar assim, foi surreal e inócuo.

- Desde de domingo estou vomitando...
- Sei, mas o que está acontecendo agora?
- Estou com diarréia, vomitando, com queimação...
- Tem febre? Onde dói?
- Não dói, é só queimação e vômito...
- Perguntei onde dói.
(Por que eles sempre acham que velho tem que ter dor? E se não tiver algum problema?)
- É queimação...
- Onde? Onde?
- No estômago...
- Perguntei onde, mostra com a mão!

(Agora, bem e de bom humor, fico me imaginando a mostrar o estômago com a mão. Deveria enfiar a mão goela abaixo? Porque não pensei nisso naquela hora?)

Levei a mão à altura da cintura. Continuando sem me olhar ele fez a prescrição dos medicamentos e me dispensou sem mais palavras. Dirigi-me à enfermaria, já sabia o procedimento seguinte, entreguei a ficha e toca esperar. Aqui a sala é menos cheia. Quase todos conseguem sentar e finalmente o fiz.

Não demorou muito e fui chamada. Na sala de medicação, dez cadeiras que se via e algumas por trás de biombos, afastadas. Todas ocupadas. Três enfermeiras e um enfermeiro corriam de um lado para outro, dando o melhor de si no atendimento àquela gente. Que contraste com o slowmotion de dias atrás. Tinham expressão em suas faces cansadas e sem máscaras. Via-se o sofrimento da profissional que não conseguia "pegar" a veia daquele senhor que faz hemodiálise e ainda a consola, dizendo que "é assim mesmo, sempre custa". A senhora de meia idade que acompanha a mãe durante a inalação, linda, de cabelos brancos assumidos, conversa solidariamente com velhinhas que estão sós, inclusive comigo, velhinha, mas só por opção, é bom deixar claro novamente, pois julgamentos são muito fáceis de fazer.

Avisei que não tinha pressa, que estava me sentindo melhor. Que cuidassem dos mais sofridos. E como os via ali.

Enquanto isso, a TV que reinava em dupla face no centro do ambiente transmitia o Brasil Urgente, onde o Datena se esgoelava na descrição de uma ocorrência, onde a polícia havia encontrado diversos corpos em adiantado estado de decomposição, desovados num terreno em meio a um matagal. Putz! Nada mais pertinente. Todos ali já estavam quase em estado de decomposição depois de tantas horas de espera. Ainda bem que tenho dentes, posso rir.

Chega a medicação. Conforme o protocolo a enfermeira confirma meu nome e data de nascimento na etiqueta do frasco e explica o conteúdo: solução de soro e sódio a 9%, um analgésico, um antitérmico, um anti-inflamatório e um antiemético. Putz de novo!!! Não tenho febre nem dor, mas insistem em que eu tenha. Não tomo anti-inflamatórios por princípio. O que fazer? Comento com a enfermeira e ela informa gentilmente,que poderia cancelar a medicação e me levar de volta a outra consulta. Dúvida: correr o risco ou esperar mais quatro horas?  Optei pela primeira opção, não sem perguntar todos os nomes e sobrenomes dos medicamentos que faziam parte daquele coquetel. Vai que tem um Plasil por ali...

Enquanto o soro corria, quer dizer, gotejava, continuei observando cada uma daquelas pessoas. Ninguém olhava para a TV. Alguns cochilavam, outros conversavam. E os profissionais se desdobravam. Elogiei a enfermeira que me atendeu e perguntei se tinha idéia de quantas pessoas atendia por turno. "Não tenho idéia e nem quero saber, para não desanimar". Ela ainda não desanimou, acredito ainda na humanidade.

Soro acabado, sou reencaminhada à sala de espera para o retorno à consulta, retirada do acesso e alta. Maravilha! Ledo engano, 19h, mudança de plantão. Como tudo tem seu lado bom, vou esperar muito, mas pelo menos não vou olhar na cara daquele ser arrogante, que queria que eu mostrasse o estômago pra ele.

Muitos estavam ali na mesma situação, penso que a maioria. Impacientes, cochilando, reclamando, alheios a tudo em suas cadeiras de rodas abençoados pela senilidade, mas todos com o adereço do acesso no braço e profundas olheiras de fome. Até eu que nunca tive olheiras, desta vez consegui as minhas.

Lá pelas 20 horas, uma jovem e simpática residente me chama, pergunta como estou, tenta justificar muito sem graça e sem sucesso, a medicação que me foi aplicada (ou devo dizer impingida?). Prescreve um remédio para náuseas, se as tiver,  e outro para DOR, caso eu precise. É incrível, eles não se conformam que eu não tenha dores.

Às 21 horas e pouco, chego em casa. Sem náuseas, uma sensação boa de bem estar, mas, meio dia de hospital, em pé a maior parte do tempo, num jejum de 4 dias e tentando escapar do virus da vez, deixa qualquer um fora do eixo, e eu não sou diferente. Tomei o meu chá de camomila com torradas, me dei um belo banho e não me lembro como cheguei até a cama, só sei que na sexta feira acordei depois das 10h, novinha em folha. Só as pernas insistiam em não me aguentar, mas já cuidei disso com muita proteína e exercícios.

Nos dias que se seguiram as notícias sobre o COVID 19 se sucederam e com elas o isolamento social se impôs. Em quarentena voluntária, fazia a contagem regressiva dos 14 dias que me separariam da visita ao hospital, "sem medo, nem dó, nem drama", afinal:

"Que sera, sera
Whatever will be, will be
The future's not ours to see
Que sera, sera
What Will be, Will be".

Grande Doris Day!

Reflexões sobre o episódio:

1               1 - Preciso rever meus conceitos sobre onde morar.

     a - Não consegui subir por mim mesma a rampa de casa para acessar a ambulância;
     b - Não conseguia descer as escadas para fazer um chá. Quando, por fim,  me arrastei para baixo, quase não conseguia subir as escadas;

2 – Devo lavar imediatamente a louça após o uso. Cai de cara numa pia cheia de louça suja e engordurei os cabelos (fato que não aconteceria com a minha irmã nem com a minha nora, pois jamais morreriam deixando louça suja na pia).

    3 - Devo usar sempre roupas com bolsos para carregar o celular.

    4 - Preciso compartilhar a chave de casa com o vizinho. Vai quê...

    5 - Pelo sim , pelo não (por que a gente fala isso?) paguei o plano de saúde. Vou dar um tempo mais.

   6 - E, por último e principalmente, tenho que mandar cortar aquela bendita árvore “espinhuda”, que parece que ri de mim o tempo todo.